Moçambique é um país imenso, de cultura e natureza infinita, de sorrisos, de alegria, de silêncio e de humanidade. No norte do país, são vividos há vários anos tempos terríveis, de ataques a aldeias, casas, famílias destruídas, milhares de deslocados e de violações constantes dos direitos humanos. Quando relemos e revivemos Moçambique, com um olhar de esperança e de paz, recordamos sobretudo o caminho. Desde a estrada até à montanha. Uma estrada de silêncio, de luz e de saudades. Uma estrada até casa. Uma casa em que a paz era possível.

Lembro-me de estar naquela mesma rua, uns anos mais tarde, a ir a pé para o trabalho. Deviam ser pouco mais que sete e meia ou oito da manhã, e já estava muito calor. No amanhecer, a meio do caminho, um senhor que vestia um fato cinzento muito arranjado fez- me parar e disse «Bom dia».

Depois de uma breve conversa, em que me explicou que estava à procura de trabalho, retirou um papelinho amarelo, que ainda hoje guardo, com uma caligrafia cuidada: o nome e o contacto. Disse que todos os dias caminhava pelo bairro, logo de manhã, e procurava alguém que ouvisse a sua história ou que parasse. Lembro-me de guardar o papel, um tanto atrapalhada e de um olhar e sorriso genuíno, em que partiu e agradeceu, sem que eu tivesse sequer tempo de dizer quase nada.

Cada ser humano conta. Cada vida que caminha em cada estrada é um desejo de reencontrar esse silêncio, essa paz perdida e ignorada.

Lembro-me também de um lugar em que a encontrei, e talvez por isso desde esse dia nunca deixei de acreditar que era possível. Um lugar de beleza imensa, entre as montanhas, onde crianças com vidas difíceis cresciam em harmonia, perto da natureza, apesar da vulnerabilidade com que nasceram e das dificuldades do dia-a-dia. Cada dia em que acordava para fazer silêncio, tratar da horta, cozinhar ou dar aulas, agradecia a vida simples e a importância de dar valor a tudo.

Nesse tempo, subia muitas vezes a uma montanha pequenina, mas grande o suficiente para uma vista lindíssima. No topo, contemplava a sorte imensa que temos, o que vamos mais ou menos construído, a história que vamos escrevendo, em cada imagem, cada cheiro a terra molhada. Com o tempo ficam instantes muito fortes, referências que nos fizeram talvez crescer e memórias de dias em que Moçambique era diferente. Não havia tanto medo. E por isso, desde esse dia, que continuo a escrever e a descrever aquele lugar assim: Nos pés, a cobrir o chão, existia uma grande quantidade de tapetes feitos de palhinhas e alguns livros guardados. O silêncio era de todas as cores. Dentro e fora, no interior e nos jardins, existia um cheiro característico difícil de descrever: Um cheiro que pedia tempo. A paz pede tempo, mas é possível.

Quando vivi em Montepuez, por exemplo, e tive a sorte de poder viajar por outros lugares do norte de Moçambique, durante tempos de alegria, entrei em cada casa e em cada mesa, e pude entender discursos de fome, mas de paz.

Ao sabermos que 'a violência armada em Cabo Delgado está a provocar uma crise humanitária com cerca de duas mil mortes e mais de um milhão de pessoas deslocadas, sem habitação, nem alimentos, concentrando-se sobretudo na capital provincial.' (Público), é urgente divulgar e recuperar memórias de tempos de paz. Acreditar, e não deixando de estar informado, que é possível.

Cada uma das pessoas deslocadas vive com medo. Medo por viverem numa situação extremamente vulnerável, expostos a situações de insegurança alimentar, de violência baseada no género e desnutrição. É esse mesmo medo que cria muros entre as pessoas de um país que sempre cantou: “pedra a pedra construir um novo dia.” Que esse dia chegue finalmente.