Em criança, adorava que a mãe nos contasse histórias antes de irmos dormir. Os meus irmãos escutavam-na e, como que por magia das palavras ou da voz, adormeciam imediatamente. Eu não, ficava tapadinho na cama, a beber tudo o que dizia. E as histórias entravam em mim de tal forma que as materializava. Tantas foram as aventuras que vivi, preenchendo as lacunas óbvias da minha curta existência, que deixei de ter a certeza sobre o que era a realidade. Em sonhos, convivia “tu cá tu lá” com tantas personagens de fantasia, que a minha realidade Interior passou a ser mais emocionante do que a outra, a realidade que tanto interessava aos adultos, quando diziam que eu não tinha os pés no chão.

Deixavam-me profundamente irritado! Via a imagem do ingénuo Dumbo à minha frente, mas com a minha cara e uma tromba em vez do nariz, a bater as orelhas como se fossem asas e a não tocar o chão. Só que eu não era assim! Podia ser distraído com algumas coisas que não me interessassem, mas ficava horas agarrado a um jogo ou às imagens de um livro de História da Arte, do pai. A realidade dos adultos sempre foi profundamente subjectiva, por depender de pontos de vista. Assim, um acontecimento poderia ter tantas versões quanto o número de observadores presentes. E não falo exclusivamente do ponto de vista humano, mas também de qualquer outro animal, vegetal e mineral que estivessem presentes na ocasião.

Se de facto existir uma memória de tudo, qualquer situação poderá ficar guardada no Grande Segredo do Silêncio. E só então, quem souber ler os sinais terá acesso à informação. No entanto, essa técnica não é ensinada na escola. Nunca nenhum professor me falou dos passos necessários para deixar a Intuição abrir caminho em mim, revelando o reino do invisível. Como dizia Saint-Exupéry – “Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos” – e eu sigo essa máxima. A felicidade, o respeito e a lealdade, conceitos filosóficos tão queridos na Grécia Antiga, não passam hoje de conceitos utópicos porque o materialismo pouco se importou com grandes ideias e conceitos. A morte continuou a ser explorada pelo medo e a culpa vai dando cada vez mais “poder” ao poder.

Assim, sonhar tornou-se uma ferramenta muito útil para mim e muitas crianças. Não falo das de agora, que estão intoxicadas com a violência das séries japonesas de animação. Curiosamente, esse material televisivo e da Internet começou a circular livremente pelo planeta e a fazer a cabeça de muitas meninas e meninos. E eu digo bem alto – adultos! Em vez de se preocuparem com os meus pés, se estão bem assentes no chão, olhem como os vossos filhos estão desinteressados de tudo e a deixar de dar valor à vida, acostumados a ver a morte banalizada pelos meios de comunicação! – (rimei, mas não tem graça nenhuma).

Nasci em Lisboa em 1964. Vivi os últimos dez anos de um total de quarenta e oito anos de Ditadura em Portugal, até à Revolução de Abril de 1974. Eu era muito miúdo e nunca percebi o que fosse o Fascismo. Fui criado no seio de uma família de Classe-Média com um pai Arquitecto e uma mãe Dona de Casa. Chegou a haver dez Arquitectos na família, incluindo pai, irmãos, tio, primos e mais família! Estudei com os meus irmãos num dos melhores colégios de Lisboa, o Liceu Francês Charles Lepierre. Lá, o ensino era Laico. Muitos dos professores eram estrangeiros e tinha um leque variado de colegas vindos dos quatro cantos do mundo. Na sua grande maioria eram filhos de Diplomatas e de Empresários com negócios em Portugal. Aprendi muito com todos eles e estou grato aos meus pais por me terem proporcionado tantas experiências interessantes. Tudo isso ficou inserido no grupo da minha vida social.

Mas era em casa que eu aprendia a ser pessoa.

De pequenino, ficava a ver o pai a fazer a barba, de manhã, em frente ao espelho redondo de aumentar que havia no quarto de banho. O cuidado que punha para não se cortar, lembrava aqueles violinistas virtuosos que se viam na TV e que pegavam no arco com tanta delicadeza e mestria, assim como o pai na navalha. Depois ia ver a mãe maquilhar-se e pentear-se no toucador do quarto. Quando se achava bonita, punha duas gotas de perfume atrás das orelhas, olhava para mim e perguntava se estava bem. Eu dizia que sim e ela ia toda contente à sua vida.

Um dia, a mãe veio arrumar qualquer coisa no grande roupeiro de sete portas do meu quarto. Inadvertidamente, deixou uma das portas abertas e saiu. Eu quis logo ver o que havia dentro. Abri a pesada porta e surgiu-me um menino a mirar-me, os olhos muito abertos. Fiquei espantado e depois, desconfiado. Não sabia que havia mais gente a viver na nossa casa. Aquele roupeiro esconderia outra família no pequeno apartamento do centro de Lisboa? E o menino que não parava de olhar para mim! Estiquei o indicador na direcção dele e vi-o fazer o mesmo para mim. Emiti um som estranho que ele imitou. Parecia que estava a brincar comigo. Nestas coisas dos primeiros contactos, as crianças sabem intuitivamente que o mais importante é criar amizade e assim aproximei os meus lábios para lhe dar um beijinho. Ele fez o mesmo e demos um beijo. O coitado tinha a boca fria como tudo. Devia ter estado a comer gelados. Fiquei parado, a olhá-lo. Tinha uma cara simpática e senti que íamos ser bons amigos. Eu ainda não sabia falar e penso que ele também não, mas pouco a pouco, lá nos fomos entendendo.

Gostámos um do outro e com sons e gestos, mostrava-lhe os meus brinquedos que eram exactamente iguais aos seus. E como sempre acontecia quando estava no meio dos meus sonhos e ilusões, alguém entrou no quarto e pegou-nos de surpresa. Era o Rui, o meu irmão mais velho, que disse do alto dos seus quatro anos – Estás a falar ao espelho para quê? – Fiquei a olhar para ele com cara de parvo. Eu já tinha dois anos mas lá falar é que não. Os pais chegaram a temer que eu fosse mudo. Comecei a verbalizar seis meses mais tarde e desde então nunca mais me calei. Mas voltando à pergunta do meu irmão, como eu estava ainda na fase a.F. (antes da Fala), não sabia o que dizer, achei melhor ficar calado a olhar para ele. E o Rui continuou a falar, abrindo mais a pesada porta do roupeiro – Aquilo que ali vês, é a tua imagem reflectida no espelho. É contigo que estás a brincar! – e dizendo isto, voltou costas e saiu do quarto, com o tédio de quem tem de estar sempre a explicar coisas a totós.

Fiquei sentado no chão a olhar para o outro menino – Espelho? Que nome mais estranho para dar a uma criança ou seria outra coisa o que o Rui estava a tentar dizer? – fiquei a ver-me, naquilo que percebia agora ser um refletor de imagens. E isso queria dizer que eu tinha aquela cara, o cabelo fino e liso, acobreado, os olhos grandes e um sorriso curioso. Era pequeno mas se me aproximasse do espelho ficaria maior! Gatinhei até ele, pus-me de pé e dei uma sonora gargalhada!

A mãe veio ver se estava tudo bem e ao perceber o que tinha acontecido, ajoelhou-se e abraçou-me por trás. Explicou-me o que era um reflexo e para que servia o espelho. Depois levantou-se e foi fechar lentamente a porta do roupeiro. Ainda deu para ver o meu amigo Espelho, a acenar-me num grande adeus. A partir desse dia, fiquei mesmo seu amigo e espantado por ele viver num mundo simétrico ao nosso. Crescemos juntos e, ainda hoje, somos cúmplices de tudo o que nos acontece de bom e de mau e nunca me sinto só.