Penalidades para cânticos homofóbicos e racistas mostram que o esporte está em evolução e que crimes não serão mais tolerados, pelo menos do Brasil.

A frase, pobres são aqueles que imaginavam o futebol limitado aos acontecimentos no gramado, dita pelo jornalista e escritor Nelson Rodrigues, faz-se cada dia mais presente na atualidade. Se olharmos para os últimos anos do futebol, observamos várias mudanças e atitudes que um dia se pensou ser impossível de acontecer, afinal, ainda é um ambiente dominado por homens e em que a cultura do machismo se faz presente. Recentemente, o Corinthians foi punido por cânticos homofóbicos realizados durante o jogo contra o São Paulo. Alguns dos presentes cantaram uma música com o termo “bichas” para se referir aos atletas tricolores. O jogo chegou a ser interrompido por quatro minutos pelo árbitro Bruno Arleu de Araújo. O time da capital paulista perdeu o direito de ter torcedores no estádio durante a partida contra o Red Bull Bragantino, jogo realizado em sua própria casa, a Arena Corinthians. A decisão foi comemorada pelo fundador do coletivo de torcedores LGBTQ Canarinhos.

Em entrevista à agência francesa AFP, Onã Rudá disse que:

Embora ainda haja um longo caminho a percorrer para derrotar a homofobia, é uma medida histórica se for levado em conta o simbolismo e a importância de uma equipe tão popular como o Corinthians.

O fato da punição corinthiana ter ganhado maior visibilidade e dado uma esperança para a comunidade LGBTQIA+, é porque essa foi a primeira sanção desde que a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) endureceu, em fevereiro, as punições contra o racismo, xenofobia e homofobia em seus campeonatos, e impôs multa que pode chegar até R$ 500 mil, perda de pontos, proibição de inscrição ou transferência de atleta, entre outras sanções. Com essa decisão, o órgão tornou-se o primeiro no mundo a adotar em seu regulamento geral sanções esportivas contra atos discriminatórios de torcedores, jogadores, dirigentes, árbitros ou técnicos durante as partidas. O coletivo de Torcidas Canarinhos LGBTQ, em parceria com a CBF, mostraram que episódios de homofobia passaram de 42 em 2021 para 74 em 2022, um crescimento de 46%.

O caso do Corinthians também chamou atenção porque aconteceu dias depois que a torcida fez grandes manifestações contra a contratação do técnico Cuca. Em 1989, ele foi condenado a 15 meses de prisão e ao pagamento de multa de US$ 8.000, pelo estupro de uma menina de treze anos. O crime aconteceu em 1987 e o treinador e outras três pessoas - que tiveram a mesma pena de Cuca -, jogavam pelo Grêmio na época e estavam em excursão à Suíça. Eles chegaram a ser presos de imediato, mas depois que a pena saiu, nenhum cumpriu. A atitude dos torcedores corinthianos passou uma visão de que estupro é crime - o que eles têm toda razão e acertam em manifestar perante uma situação como essa - mas que homofobia não e está liberado praticá-la. Há quem use o discurso de que realizar cânticos homofóbicos está enraizado na cultura do futebol e que tentar acabar com isso é estragar com o esporte. Um pensamento totalmente esdrúxulo, já que o futebol atinge várias pessoas e deveria ser um espaço para abraçar as pautas sociais.

Brasil pune, Espanha ignora

Os cânticos preconceituosos estão presentes em todo o mundo. Prova disso foi o racismo sofrido pelo jogador brasileiro Vinícius Júnior na Espanha. Apesar do boom ter sido o episódio que aconteceu durante a partida contra o Valencia no dia 21 de maio - décima vez que ele era vítima de racismo - o jogador já tinha passado por outros episódios, e, em um deles, um boneco que o representava chegou a ser pendurado em uma ponte de Madri. Ele estava amarrado pela cabeça, simulando um enforcamento. Durante a partida que repercutiu no mundo inteiro e só aumentou o pensamento que se tem sobre a Espanha nos dias de hoje, que é um país racista, torcedores da equipe adversária o chamaram de mono, macaco na tradução. O arbítrio chegou a paralisar o jogo por oito minutos e o sistema de som do estádio foi acionado para informar o que estava acontecendo e que a partida não retornaria enquanto as ofensas não parassem.

Esse acontecimento, que gerou ainda mais indignação após Vini Jr. ser expulso depois de agredir um jogador do time adversário enquanto tentava se livrar de um mata-leão, mostrou que o racismo ainda é bastante comum e que alguns lugares ainda não o punem. Na Espanha, por exemplo, não tem uma lei específica para combater esse crime. Racismo se encaixa em delitos de ódio, porém, a lei não cita diretamente a injúria racial, só diz que o país se coloca em defesa da igualdade. Contudo, após esse episódio, segundo o jornal ‘El País’, os espanhóis começaram a ser pressionado para acelerar a elaboração de um projeto de lei que propõe multa de € 300 mil a € 500 mil para quem cometer injúria racial e também discute modificações no Código Penal para penas de prisão mais duras. No texto, a qual o jornal espanhol teve acesso, se contempla ações voltadas para prevenir, eliminar, punir e corrigir o racismo, a discriminação racial e formas correlatas de intolerância nos setores públicos e privados, e aponta que as infrações seriam classificadas como: leve, grave ou gravíssima.

Enquanto a Espanha ainda discute o que fazer, projetos para combater o racismo são uma realidade no Brasil há mais de 30 anos e se torna cada vez mais dura as punições. Para além da lei já existente, após o episódio de Vini Jr, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) aprovou a Lei Vini Jr, que tem como objetivo combater o racismo nos estádios da cidade carioca. Apesar do caso do jogador brasileiro que joga do Real Madrid ser o que mais ganhou repercussão nos últimos tempos, outros episódios foram relatados após e até mesmo antes dele. Um levantamento do Observatório da Discriminação Racial do Futebol, mostrou que o Brasil viver um aumento no número de ocorrências de racismo em 2022. No ano passado foram comprovadas 90 situação, um aumento de 40% quando comparado com os dados do ano anterior, em que foi registrado 64 casos. Seja na Europa ou até mesmo aqui na América Latina, jogadores brasileiros são constantes alvos de cânticos racistas por parte das torcidas adversárias, que podem ser de outros países e até mesmo os próprios brasileiros.

Futebol é lugar de pauta social

A Copa do Mundo do Catar nos mostrou que o futebol é um espaço para manifestações sociais e políticas. Antes mesmo dela começar, já se sabia que a edição seria marcada por pautas políticas, o que se comprovou na fase de grupos e logo nas partidas iniciais. No segundo jogo, partida entre Inglaterra e Irã, houve dois atos. Os ingleses se ajoelharam no campo antes da bola rolar para protestar contra o racismo e a favor dos direitos humanos, assunto bastante debatido desde que o Catar foi anunciado como país-sede. O técnico Gareth Southgate disse que discutiram sobre ajoelhar, e chegaram à conclusão que deveriam fazer o que acreditávamos como time, e temos feito isso por muito tempo.

Esse ato também se repetiu na partida contra o País de Gales. Já os iranianos, optaram por não cantar o hino, um gesto que foi visto como apoio às manifestações que aconteciam no país desde setembro - Copa foi realizada em dezembro - quando Mahsa Amini, uma jovem de 22 anos, morreu após ser levada pela polícia da moral por usar hijab "incorretamente". O caso gerou ondas de protestos em luta pelo direito das mulheres.

Em entrevista após o jogo, o técnico do Irã, Carlos Queiroz, admitiu que os jogadores de sua equipe estão sofrendo com a pressão dos protestos no país:

Não é bom vir ao Mundial e pedir a eles que façam coisas que não são sua responsabilidade. Eles querem dar orgulho e alegria ao povo. Vocês nem imaginam o que esses rapazes estão vivendo a portas fechadas nos últimos dias. Não importa o que eles digam, as pessoas querem matá-los. Você imagina estar em um momento de sua vida em que pode ser assassinado por tudo o que você diz? Com certeza temos sentimentos e crenças e em seu devido tempo, no momento adequado, os expressamos.

A torcida iraniana também realizou manifestações por meio de cartazes e bandeiras. A pauta LGBTQIA+ também se fez presente.

Apesar da Fifa ter barrado Harry Cane, capitão inglês, de ir à campo com a braçadeira One Love, para se manifestar a favor dos direitos humanos e LGBTQIA+, ele e os demais jogadores usaram uma braçadeira que dizia No descrimination. Se por um lado os atletas foram proibidos de usar a One Love durante o jogo, ela foi estampada no braço de Alex Scott, repórter e ex-jogadora da seleção feminina da Inglaterra e da ministra do Interior, Nancy Faeser. Em defesa ao mesmo tema, a Alemanha também se manifestou. Impedidos de se manifestar da forma que queriam, devido à punição da Fifa, eles posaram para foto com a mão na boca, simbolizando que foram censurados pela entidade. Para além desse tema, o jogo entre Portugal e Uruguai ficou marcado pela primeira invasão a campo na Copa. Um torcedor saiu correndo pelo gramado carregando uma bandeira LGBTQIA+ e com uma camisa com os dizeres Respect for Iranian Woman e Save Ukraine, país que está em guerra com a Rússia desde 24 de fevereiro de 2022. Protestos pró-palestina também se fizeram presentes.

Todos esses acontecimentos mostram que o futebol está em evolução e deixou de ser um lugar em que se pode fazer qualquer coisa e não ter punição. Não é mais uma terra sem lei, agora, existem leis e penalidades. Claro que ainda existe muito a se avançar, mas esses pequenos passos já mostram um sinal de esperança. Isso mostra que pautas frequentemente debatidas fora dos estádios, agora também vão estar dentro deles.