Há um livro infantil que, particularmente, adoro: Rápido como um gafanhoto de Audrey Wood1. Esse livro pode ser um daqueles que o leitor desatento passa os olhos rapidamente, conta a história para a criança que estiver por perto e pronto: livro lido, conto contado. No entanto, a simplicidade dessa história, tão bem ilustrada, pode nos levar a uma profunda reflexão: quem somos?

É comum em nossa cultura utilizarmos adjetivos para nos definir. Alguns dizem, sou tímido, sou tranquilo. Outros definem-se como briguentos, impacientes, dentre tantos adjetivos possíveis. Muitos adultos costumam referirem-se as crianças com as quais convivem utilizando adjetivos que, mais do que qualidades ou defeitos, acabam rotulando a criança, passando a ideia de que ela é assim. Na língua-portuguesa o verbo ser tem o sentido de algo estático, pouco possível de mudanças. Se algo é, assim será. Que podemos fazer? Fulano tem uma personalidade difícil; já ciclano tem uma personalidade que até parece um doce. Quem nunca ouviu alguma definição sobre si mesmo sair assim, da boca dos outros, de uma forma tão natural que até parecia verdade?

Ao longo de nossas vidas construímos “quem somos”. Parte desta construção considera o modo como as pessoas que valorizamos nos tratam. Pais, mães, avós, professores e demais atores com os quais convivemos têm, portanto, certa influência no modo como nos percebemos como pessoas. Nós interpretamos as mensagens claras ou indiretas que recebemos desses atores e ao poucos vamos realizando ações compatíveis com essas mensagens, caso a queiramos manter, ou tentamos mudar tais mensagens, caso acreditemos que essas mensagens não sejam fiéis ao como nos percebemos. Toda essa vivência acontece cotidianamente em cada um dos contextos que frequentamos, seja nossa casa, seja a escola, por exemplo. Assim, vamos nos construindo, escolhendo nossas ações, pensamentos e sentimentos em um complexo e dinâmico processo segundo nossas próprias análises sobre nós mesmos e sobre as interpretações dos julgamentos dos outros sobre nós.

Esse processo ocorre envolto em um contexto cultural que auxilia a interpretar tais mensagens e quem somos. Se na década de 80, por exemplo, uma pessoa vivia seu cotidiano de forma mais localizada, sendo o bairro uma das mais importantes fontes de informações culturais para cada um de nós, atualmente, com o advento das redes sociais as fronteiras culturais foram diluindo-se: “dancinhas” da moda viajam de um hemisfério ao outro na velocidade de suas “curtidas”. E, paradoxalmente, enquanto as diferenças culturais parecem diminuir, as diferenças sociodemográficas parecem se destacar, destacando as diferenças econômicas, os preconceitos raciais e a desigualdade social, dentre outros. Para ilustrar esse ponto, faço referência a uma personagem criada por Chimamanda Ngozi Adiche em Americanah2, que somente “se descobriu negra” quando deixou a Nigéria para ir estudar no exterior. Foi em terras alheias em que a personagem sentiu o preconceito racial por primeira vez, contudo sentiu o preconceito social quando voltou à sua terra e passou a ser julgada como “estudada”, diferente do que era.

Nossa nova realidade, tão dinâmica, traz novos desafios, sejam eles pessoais ou sociais. No entanto, traz também novas oportunidades: podemos, pouco a pouco, construir nosso caminho pessoal por meio de escolhas. Para isso, as capacidades humanas como intencionalidade, antecipação, autorregulação e autorreflexão necessitam ser, segundo o grande o psicólogo Bandura3, desenvolvidas por meio de processos sociais que permitam às pessoas perceberem as relações entre suas intenções, ações e o ambiente, e, sobretudo, permitam às pessoas reconhecerem-se como agentes conscientes de ditas ações.

Importante, pois, é perceber que as ações agênticas não necessitam apenas ser grandes ações, como o projeto Missão Marte, tão bem protagonizado pela ONG Gerando Falcões, o qual tem tão bem elevado a autoeficácia e a eficácia coletiva das comunidades em se desenvolverem. Pequenas ações, aquelas cotidianas que perpassam a vida de todos, podem ser realizados por meio agênticos, e podem contribuir para fortalecer nossa percepção sobre nós mesmos.

Lembro-me do ano 2022, no qual, devido a lenta volta à normalidade pós-pandêmica, uma estudante se queixava por ter que almoçar sozinha na escola, já que eram permitidas apenas duas pessoas por mesa e sua classe tinha alunos em quantidade ímpar. Ela comentava que não achava isso justo já que os restaurantes receberem pessoas para comer em mesas de seis ou oito pessoas. Até que ela organizou um abaixo-assinado, devidamente justificado, solicitando à direção escolar autorização para sentarem em 3 ou quatro pessoas por mesa. Essa pequena ação agêntica beneficiou a essa estudante e aos demais estudantes de seu grupo, não saiu na mídia, mas esse tipo de ação agêntica cotidiana e local traz grandes benefícios aos diretamente envolvidos, sendo, ao meu ver, um dos pontos importantes do fazer educativo: estimular a confiança necessária às crianças e adolescente ao desenvolvimento de ações intencionais que possam contribuir à qualidade de vida de si e dos pares com os quais convivem.

Fundamental para que possamos exercer nossa capacidade agêntica é reconhecermos como pessoas possuidoras de diversas características. As vezes somos rápidos, outras somos lentos. As vezes somos comunicativos, mas podemos também ser introspectivos. Uma vasta combinação de antônimos forma nosso jeito de ser quem somos hoje. Diferentes de quem éramos ontem, possibilidades do que possamos vir a ser amanhã. A flexibilidade necessária para a adaptação às mudanças, planejadas ou não, que podem desafiar nossa vida, pode ser a característica chave para que possamos sempre nos reconhecer como seres que somos: múltiplos em nossas especificidades. Como termina o livro de Audrey Wood, “junte tudo isso e assim sou eu”. Entretanto, gostaria de acrescentar: assim sou eu agora, distinta de quem fui e esperançosa sobre quem posso vir a ser.

Notas

1 Wood, Audrey. Rápido como um gafanhoto. Brinque-Book. 2002.
2 A personagem brevemente citada consta no livro: Adichie, Chimamanda Ngozi. Americanah. Companhia das Letras. 2014.
3 Os pensamentos aqui descritos inspiram-se, mas não se limitam ao livro, Bandura, Albert. Social Cognitive Theory: an agentic perspective on human nature. Wiley. 2023.