No pós-Gutenberg, isto é, no seguimento da maior facilidade de difusão de trabalhos escritos a partir da criação da máquina de escrever no século XV, o consequente aumento da produção literária leva a uma diversificação das obras em circulação. Abrem-se assim as portas a um maior acesso a conhecimento e cultura, mas também à expressão e partilha de ideias e histórias de uma forma sem precedentes. Para aqueles que ambicionam partilhar o seu trabalho com o mundo, este é, de facto, um ponto de viragem na História. Contudo, este processo acaba por ser também influenciado pelos inícios da industrialização europeia: a publicação de um livro depressa se torna numa empreitada comercial que requer investimento e um mercado para onde escoar o produto. No século seguinte, com a disseminação da máquina milagrosa, os custos da produção de livros baixam consideravelmente. Esta mentalidade capitalista amplamente difundida pelo velho continente conduz à necessidade de cada autor se destacar dos seus pares, valorizando a sua obra dentro da elevada oferta.

Se inicialmente esse valor era medido quantitativamente, tendo por base o volume de vendas, mais tarde assiste-se a tentativas de oficializar a classificação de livros de acordo, não com o seu valor comercial, mas sim considerando o valor do seu conteúdo. Aliás, a análise literária e textual que tal implica tem as suas origens muito antes. Platão, Aristóteles, e Horácio destacam-se no período greco-romano. Na época medieval, temos Agostinho e Quintiliano. A partir do século XVI, veremos novos nomes e teorias emergir – o neoclassicismo renascentista, por exemplo. O século XX será um dos mais prolíficos em termos da diversidade de estudos analistas: o marxismo, o formalismo e o formalismo russo, a psicanálise, o estruturalismo, vêm propor novas formas de ler e de se relacionar com a palavra escrita.

Portanto, a crítica literária era já variada quando, em 1901, o cientista Alfred Nobel cria aquele que se virá a tornar no prémio literário mais prestigiado no mundo. Almejando o reconhecimento não apenas de uma obra, mas o conjunto da produção de um dado autor e na sua contribuição para o meio literário, o Prémio Nobel vem inaugurar uma era de distinções oficiais tendo por base análises críticas desta forma de arte. Os prémios literários que se sucedem podem ser alvo de um escrutínio particular, muito associado à ideia de subjetividade. Quem é a Academia Sueca para classificar José Saramago como o melhor de entre os escritores portugueses? De onde provém a autoridade dos membros do júri do Booker Prize para avaliar ficção internacional e escrita em língua inglesa?

Uma resposta fácil e barata seria responsabilizar a subjetividade dos ditos júris e juízes pelos louvores atribuídos a X autores em detrimento de outros até aos dias de hoje. Uma possibilidade verdadeiramente tentadora. Não estaremos, no entanto, a cair no vazio falacioso de um cinismo extremo? Vejamos, então, algumas linhas de raciocínio que poderão ajudar a fazer luz sobre o modo que este tipo de prémios é relacionado como uma noção de ambivalência que depressa se faz passar por justiça.

Liberdade de expressão e de pensamento permite-nos, antes de mais, o acesso a materiais sobre os quais recaí, a posteriori, a possibilidade de fazermos e exprimirmos juízos de valor. Um processo que pode ser gratificante, mas também dar azo ao lado reverso da moeda. O desprezo pelas convenções sociais que levam à formação de painéis e academias cujas opiniões são – quase dogmaticamente – tidas num nível muito superior relativamente aos restantes leitores é um sentimento fácil de se construir.

Um dos argumentos mais utilizados por críticos dessas convenções remete à ideia de superioridade cultural enraizada no meio académico um pouco por todo o globo. Fará esta característica parte da herança colonial? A pergunta é válida e faz todo o sentido, na medida em que a referida hierarquização parece encontrar uma força especial na comunidade académica ocidental. Basta pensarmos na construção e dispersão do cânone literário dito “ocidental” e cuja “universalidade” só nas décadas mais recentes começou a ser posta em causa.

A grande questão que aqui coloco enquanto leitora não é se determinados livros merecem constar do cânone, ou se dado autor deve receber o Prémio Cervantes, o Camões ou nenhum. Aos olhos de pelo menos alguns leitores, autores como Mario Vargas Llosa e Mia Couto têm mérito suficiente para serem galardoados, e assim o foram. Não critico a qualidade do seu trabalho, mas pergunto-me se as limitações da subjetividade humana não estarão a condenar autores menos reconhecidos ao esquecimento.

No fundo, talvez estejamos a olhar para estes prémios de uma forma similar à forma como o cânone literário era visto até recentemente: de baixo para cima, como se olhássemos para um patamar inalcançável e intocável. E o erro é pensarmos em literatura – ou em qualquer aspeto cultural – como um extra da nossa sociedade. As histórias que povoam a literatura – escrita e oral – são uma parte intrínseca da nossa humanidade que nos permitem reconhecer e apreender o mundo em nosso redor. O facto de um livro não ser globalmente considerado “canónico” ou o seu valor não ser categorizado como “premiável” não nos dá o direito de julgar a sua qualidade. O seu valor deve ser, antes de mais, medido pelas suas palavras. É tão válida uma crítica negativa a um vencedor como uma crítica positiva a alguém que nunca tenha sido nomeado, desde que o crítico tenha uma intenção construtivista por detrás. E, claro, convém ter lido o livro.