Uma vez perguntaram, a uma pessoa próxima a mim, se era ela “religiosa”. Respondeu ser “espiritualizada” e que não tinha nem praticava nenhuma religião. Como o momento ficou rodeando a minha cabeça, continuei explorando os dois conceitos, desde então.

Certamente podemos dizer que a busca por um sentido para a vida e para as existências sempre foi constante ao longo da história daquilo que conhecemos como humanidade. Muitas vezes, tal busca é expressa atravessando inúmeros conceitos, como religião, ciência, filosofia e espiritualidade.

Definamos primariamente, de maneira bem resumida, que quando nos referimos ao termo “religião” estamos nós falando sobre tradições, organizações que oferecem algumas respostas para os piores sofrimentos do universo humano. A espiritualidade, por outro lado, seria mais uma busca pessoal por conexões profundas com a realidade e sem um propósito linearmente definido — muito embora seja marcada por desafios constantes e bastante comprometimento com a ética e com o autodesenvolvimento.

Planos de fundo apresentados, durante este pequeno ensaio quero convidar você a refletir sobre uma melhor compreensão desses conceitos e como eles podem afetar-nos individual e coletivamente. Apesar de sua complexidade, são ideias fundamentais para a nossa percepção do mundo. Afinal, podemos encontrar um sentido para a nossa vida sem mergulhar naquilo que chamamos espiritualidade? Podemos encontrar um verdadeiro sentido, do que quer que seja, sem questionar o que nos foi ensinado, — sem questionar as “verdades estabelecidas” — como encontramos em muitas religiões?

São questões que não espero (e nem ouso) encontrar a resposta definitiva, mas tenho ciência que podemos contribuir para um diálogo mais transparente e crítico, aprofundando-nos sobre os contextos sócio-político-culturais que nos afetam, esbarram nessas ideias todas. Espero que você tenha uma ótima leitura e que este artigo possa um dia contribuir com uma partícula a mais de reflexão sobre um tema tão complexo.

O que é religião e o que é espiritualidade?

Partindo como base a nossa introdução, talvez possamos oferecer uma tentativa de definição mais apropriada. A religião pode ser explicada como uma prática que envolve a adesão a um sistema de crenças, rituais e dogmas, os quais são estabelecidos por uma instituição específica, cada uma organizada com seus respectivos sistemas. De maneira geral, religiões podem contar com uma estrutura hierárquica própria e oferecer aos seus seguidores respostas, às vezes até regras, para as questões existenciais e morais — as mesmas que, na maioria das vezes, são baseadas em antigos livros sagrados ou práticas milenares.

Por outro lado, a espiritualidade pode definir-se como uma busca individual, algo mais tangente ao campo pessoal-particular. Isso por conter conexões mais profundas de um ser consciente de si e com o entendimento do universo a sua volta — algo que transcenda a realidade material. Ela não está necessariamente ligada a uma instituição ou dogmas específicos. Assim, “ser uma pessoa espiritualizada”, como na fala que introduz o artigo, envolve a exploração do eu interior, a busca de um significado menos raso para a existência, do que aqueles que muitas vezes temos plenamente disponíveis em nossos caminhos.

Ambos os conceitos têm suas próprias características e podem ser vivenciados de formas diferentes por cada indivíduo, sabemos. Algumas pessoas encontram consolo e sentido na prática de uma religião, seguindo suas tradições e dogmas. Tais práticas, com certeza, não excluem outras ao preferir buscar a espiritualidade de forma independente, desenvolvendo sua própria visão de mundo, o mais importante para a contribuição do conhecimento e para o constante desenvolvimento da pessoa humana.

A religião sem espiritualidade: maldição disfarçada?

Passado o pequeno olhar que tivemos pela definição destes dois conceitos, adentramos onde tais questões se interpolam, possibilitando um experimento de pensamento. Imagine-se nas práticas e tradições de uma certa religião: estamos praticando os rituais prescritos e seguindo a dieta alimentar estritamente regrada pelos princípios ali praticados. Repetindo orações e versículos sagrados conforme a orientação de líderes — desde as atividades semanais aos ensinamentos transmitidos — porém, em sua vida diária, nada dessas coisas parece tocá-lo profundamente ou estimular reflexões sérias sobre a condição humana.

Há algo que falta aí, não é?

De repente, percebe-se a ausência de questionamento e da criticidade, devidas de um ser constituído de consciência. O espiritual toca ao todo e pode residir no choque entre o aspecto estrutural da religião (o rito, a prática ritualística em-si) e rivalizar-se ao impulso mais caloroso de uma busca pessoal pelo entendimento profundo (que seria, no seu fim, a espiritualização do ser consciente de si). Se tal afirmação estiver correta, um possível ajuste nesse mecanismo alienador da religião precisaria, necessariamente, abordar essas duas faces?

Ousaria dizer que sim.

É crucial lembrarmos de que, por experiência como humanidade, independentemente do dogma, nunca deve ser aceito cegamente, mesmo aqueles vindos das vozes mais propagadas no mundo contemporâneo ou fincada em nossas raízes através dos conceitos estabelecidos há tempos.

Cada indivíduo participante precisa de discernimento e com ele poder estabelecer limites e explorações, sejam mundanas, científicas ou sagradas. E para construirmos esse mundo de maneira ética e responsável, precisamos abrir sempre mais espaço para o questionamento, a reflexão crítica, propriamente dita — possuir uma mente inquisitiva que não tenha medo de vasculhar as profundezas deveria ser uma dádiva e não uma condenação em qualquer espaço.

O saber total não existe!

A partir da distinção das definições de religião e espiritualidade, permearam o terreno sensitivo, suscitado pela intersecção desses dois conceitos, determinantes na civilização humana. No limiar dessa relação, emerge a questão: é possível dissociar um do outro?

Podemos viver uma inquestionável submissão aos dogmas impostos por uma fé institucionalizada sem as nuances contextuais proporcionadas pela experiência individual da espiritualidade? Em nosso experimento reflexivo, é provável constatarmos que não. A ausência desse olhar crítico-próprio resulta em um vácuo de compreensão existencial — gerando indivíduos mecanicamente religiosos e desconectados da potente vivência introspectiva interior favorecida pelo exercício espiritual autônomo.

Mergulhamos, ainda, no panorama de uma existência humana regida por um profundo anseio pela totalidade do conhecimento, chegando à conclusão: o saber completo é mero espectro ilusório. Embora as organizações religiosas tenham seus méritos culturais ao fornecer caminhos já pavimentados por gerações anteriores, não podemos nos fechar exclusivamente a esses manuais prescritivos da existência — afinal, somos viajantes independentes na infinitude de possibilidades da existência humana.

Sendo assim, podemos concluir que ambas, religião e espiritualidade, podem ser dissociáveis do ponto de vista de uma jornada autenticamente humana rumo ao sagrado. Em uma segunda instância, harmonizar tal estrutura dualística é fundamental para converter dogmas sufocantes em catapulta para liberar nosso potencial. Devemos conviver com essa dinâmica interior pertencente à fé institucionalizada e à busca individual pelo sagrado inominável.

Ao mesmo tempo, precisamos cultivar respeito pelas tradições milenares das práticas religiosas, jamais devendo ignorar as necessidades das pessoas ou suprimir as organizações, praticantes de tais tradições.