Num começo da tarde, onde sempre o sono chega, logo depois do almoço, quando dava aulas na Escolinha do Garibaldo, por volta dos anos noventa, chegava na referida Escola a aluna Rosali de quatro anos de idade para assistir aula no antigo jardim da infância. Por sinal, acredito que este nome nunca deveria ter sido mudado, jardim da infância é um lugar de memórias e afetos. Rosali era uma menina esperta e inteligente, hoje deve ser uma linda moça. Antes de chegar na sala de aula, havia um corredor. E, como eu estava sentada em círculo coma as outras crianças chamei Rosali fazendo gesto com minha mão: - Entre Rosali! Ela balançou a cabeça de um lado para o outro, dizendo, não, não! Fiquei a pensar, por quê Rosali não queria entrar na sala de aula? Então, perguntei novamente: - Entre Rosali! Ela disse: “Tenho vegonha” (Vergonha!). Continuei a pensar, como uma criança de quatro anos tem vergonha? Fui até Rosali, peguei na mão dela e tudo ficou bem.

A vergonha é um sentimento que veste a gente como uma roupa. Nesse sentido, como anda a vergonha na era do wi-fi? Recentemente, ou seja, no ano passado, a vencedora do Nobel de literatura Annie Ernaux escreveu um livro intitulado – A vergonha - “A vergonha se tornou, para mim, um modo de vida. No fim das contas, já nem percebia sua presença, ela estava em meu próprio corpo”. Antes do wi-fi o sentimento de vergonha era voltado para questões da moral, hoje é uma maneira de protesto ou modo de vida. Sair com roupa amassada antigamente era vergonhoso, hoje é estilo. Andar com cabelos assanhados também. A vergonha sinaliza o comportamento de uma determinada sociedade. Eu, por exemplo, tenho vergonha de muitas coisas, tenho vergonha de soltar “pum” na frente dos outros, tenho vergonha de dizer coisas que não devo na hora errada...a lista é grande.

A vergonha é um regulador social, um termômetro. Na minha adolescência tinha vergonha de dizer que morava num subúrbio. Hoje, em tempos líquidos, fluido e efêmero, como diz Bauman, a vergonha, ou rubor está cada vez mais despercebido. A vergonha vem sempre do olhar do outro. Escrever este texto, por exemplo, poderá até me causar vergonha. O receio de não estar à altura de padrões impostos pela construção social da sociedade pode nos causar vergonha. O poeta Pablo Neruda no seu livro - O livro das Perguntas, indagava, “por que as árvores escondem o esplendor de suas raízes?” Para refletir, devemos pensar que a vergonha fica escondida, esperando uma oportunidade para se manifestar no cotidiano da vida.

Mas, onde mora a sua vergonha? Uma amiga, me falou, que cada um tem a sua vergonha. Qual é a sua? Tenho vergonha de ter vergonha. Assim, falava Michel Maffesoli, “ O mundo só é miserável para os que julgam assim”. Nesse tempo reticente de desconforto e de fake news, o que poderíamos chamar de vexatório hoje em dia? Falo isso, porque sentir vergonha não é só ser julgado, mas é antes de tudo o próprio julgamento de si mesmo. Então, devemos começar a refletir, o que faço para embelezar o mundo? Ou também, que rastro queremos deixar no mundo? Cada vez mais, a compaixão vem sendo substituída pelo julgamento sem sentido. Digo sem sentido porque desconhecemos a raiz da vergonha que há no outro. A humilhação, a desonra, o descrédito, e a ofensa trazem e fazem vergonha. Nesse parâmetro, numa visão em paralaxe, a vergonha pode estar associada ao lugar que me encontro, aos costumes e a cultura.

A vergonha está integrada ao ser e a sua valorização. O perigo da construção social, e do inferno das repetições, como diz o escritor Sidney Rocha, é que a vergonha hoje em dia vem sem o rubor. Pois bem, a vergonha na era do wi-fi parece-me efêmera ou até mesmo um dispositivo esquecido. Será que vale mais, vivermos felizes ou termos uma vida interessante? Ser um ser “sem vergonha” aponta para uma atitude nobre na era do wi-fi?

Daí, poderemos refletir, se não existe castigo, também não existirá vergonha? Na história da humanidade há vários exemplos sobre a falta de vergonha, aqui em Pernambuco, por exemplo, temos a história do maestro Mozart Vieira que sofreu todo tipo de humilhação para mostrar o bem que a música faz na vida das crianças e que foi retratado no filme – Os meninos de São Caetano. E, o Ex-presidente da África do Sul, Nelson Mandela, que também foi humilhado por ser contra o aparthaid, passou muita vergonha. Também no livro - O crime do padre Amaro, de Eça de Queiroz, levanta um turbilhão de vergonha para explicar os parâmetros na vida e suas imposições.

E por aí vai, a deselegância das mentes perversas em destruir o que mais temos de humano, que é o sentimento e o pensamento bom sobre a vida.

A vergonha também passeia junto com a culpa. E, para isso, conhecemos bem o trabalho generoso de Jesus Cristo que veio para mostrar o caminho da verdade e da vida pelo amor. São tantos conflitos, tantas desavenças que por um momento fico sem saber o que aconteceu com o mundo. Não há espaço para a gentileza. Talvez Steven Pinker explique melhor em seu livro, Racionalidade - O que é, porque parece rara e porque importa, afirma que, “A pobreza não requer explicação; ela é o estado natural da humanidade. O que precisa de explicação é a prosperidade.”

Necessitamos compreender que há vergonha quando não sabemos o que fazer com prosperidade. Que, por mais que a vergonha exista, utilizemos a racionalidade, onde a sábia natureza faz uso. Ser racional, não significa que não tenho sentimento. O escritor inglês Charles Dickens comenta que, “O Natal é um tempo de benevolência, perdão, generosidade e alegria. A única época que conheço, no calendário do ano, em que homens e mulheres parecem, de comum acordo, abrir livremente seus corações”.

Digamos que é no Natal, época que o sentimento de vergonha, e de culpa, ilumina alguns corações humanos. É um período de desabrochar a compaixão. O que não fiz correto, o que me causou dano, pode apagar no Natal. Ah, seria muito bom que folguedo do pastoril, com a Diana e cordão azul e o cordão encarnado, num presépio encenado, trouxessem de volta a inocência do ser humano. E que a chegada do menino Deus, fosse capaz de mostrar o rubor nas faces dos bem aventurados, pela sua capacidade de revelar todo bem que fez durante o ano de 2023. Nos semblantes dos reisados, das festas do interior, possam trazer uma onda de pensamento bom nos corações das pessoas tristes e solitárias. Sabendo que tudo se transforma, vamos deixar que a boa “vergonha” apareça para que assim possamos entender o próximo com suas tolices e racionalidade.

Despertem o natal que há no seu coração! Cantem, festejem, renovem todo bem que existe dentro de você! Por que bom mesmo é usar a espontaneidade para o bem, e que as múltiplas formas da vergonha, estejam apenas nas brincadeiras da infância. Para isso, o compositor J. S. Bach, que tinha o número do telefone de Deus, fez algumas composições das passagens bíblicas sobre a vergonha do apóstolo Pedro ter negado Jesus Cristo. E, que neste natal, as nossas raízes se fortaleçam para que de maneira amorosa possamos embelezar o mundo.

Não é tanto o que fazemos, mas o motivo pelo qual fazemos que determina a bondade ou a malícia.

(Santo Agostinho)