Sempre que a data comemorativa de Tiradentes - 21 de abril - se aproxima, presencio questionamentos sobre o heroísmo deste inconfidente ou sobre a validade do movimento da Inconfidência Mineira. Na maioria das vezes são análises marcadas pela dicotomia bem/mal, que não procuram compreender esses personagens e fatos em sua época e ao longo da História.

A forma como enfatizamos e interpretamos a Inconfidência Mineira ao longo do tempo nos diz muito sobre ela e sobre nós mesmos. Pois, como diz Walter Benjamin:

Um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo que veio antes e depois.

A Inconfidência Mineira é um movimento que traz em si muitas contradições e ambiguidades. Vista por alguns como movimento patriótico, republicano, heroico e marco da identidade nacional. Por outros é considerada um movimento elitista, cravado de interesses particulares e divergentes que só se afinavam quanto à resistência ao pagamento dos tributos à Coroa Portuguesa. Dependendo do foco, do recorte ou personagem envolvido, todas essas representações são verdadeiras.

O movimento sedicioso que foi abortado entre os anos de 1788 e 1789 foi bastante heterogêneo e formado por homens que foram idealistas, oportunistas, ousados, astutos, sonhadores, loucos e poetas. A Inconfidência Mineira foi composta por todas essas facetas humanas. O cenário era propício à revolta, pois na região das Minas imperava a ganância pelo ouro e pelo enriquecimento rápido, em oposição ao poder português que procurava limitar esses interesses particulares em benefício da Coroa. Minas Gerais “evaporava tumultos e motins”, como diziam os homens do século XVIII.

Esse clima contestatório foi estimulado pela expectativa da decretação da Derrama: uma cobrança fiscal que exigia os impostos pendentes para assegurar à Coroa Portuguesa o piso de cem arrobas anuais na arrecadação do quinto (retenção de 20% do ouro extraído para Portugal). A indignação era crescente, sobretudo devido à decadência da atividade aurífera.

Estrategicamente, os inconfidentes marcaram a data da eclosão da revolta para o dia que fosse decretada a Derrama, pois a cobrança dos impostos pendentes arrebanharia apoiadores ao levante. No entanto, os governantes também perceberam o poder de descontentamento e instabilidade que a Derrama provocaria e a suspenderam. Logo em seguida, a conspiração foi denunciada e desmantelada. Porém, o fato de não ter sido deflagrada não reduz a potência de suas ideias e desdobramentos.

Pelo menos cinco encontros foram realizados entre os inconfidentes, nos quais ideias revolucionárias foram debatidas e propostas. A República Representativa era ainda um ensaio na América Inglesa e já estava na pauta da Inconfidência Mineira. A inspiração republicana dos inconfidentes mineiros veio muito mais do francês Montesquieu do que do inglês John Locke, referência teórica dos norte-americanos.

Outras propostas inovadoras foram levantadas nos encontros dos inconfidentes como o projeto industrializante com ênfase na indústria têxtil e metalúrgica; a redução da carga tributária; a criação de uma universidade e de um sistema de correios. Quanto à ideia da Abolição da Escravatura - apesar de ter sido proposta e defendida por alguns - no último encontro dos inconfidentes, no dia 26 de dezembro de 1788, ficou definido que não seria efetivada de imediato para que não provocasse maior instabilidade. Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, também apoiou essa posição. Portanto, aquele que foi considerado o maior defensor das liberdades, não as defendia para todos.

Como a Inconfidência Mineira não se concretizou de fato, não houve necessidade de muitas definições políticas e nunca houve consenso sobre nenhuma delas. Caso a República Mineira fosse implementada, certamente teríamos grandes impasses e lutas internas. Torna-se impossível, portanto, determinar com clareza o caráter e a natureza do movimento. Apenas com as definições e decisões tomadas após o levante poderíamos analisar se a Inconfidência Mineira foi um movimento heroico, transformador e revolucionário ou apenas um movimento reformista, de interesses particulares, típico dos motins do Antigo Regime. Jamais teremos essa resposta, mas a Inconfidência Mineira é reveladora sobre o cenário de pensamentos e possibilidades vivenciados pela população das Minas Gerais no final do século XVIII.

Ao longo da História, a Inconfidência Mineira foi representada de formas diferentes e contraditórias. A Memória, mesmo que partindo de experiências pessoais, evolui no jogo de poder do espaço coletivo. A memória de um fato passado assume novas configurações quando retomadas no presente e está sujeita aos interesses do grupo que a invocou. Portanto, as disputas em torno da memória da Inconfidência Mineira procuraram lembrá-la ou esquecê-la; ressaltar determinados aspectos em detrimento de outros.

Durante o Período Imperial, a Inconfidência era um tema proibido e perigoso, seus participantes eram considerados traidores. Afinal, o Brasil era governado por descendentes de D. Maria I, Rainha de Portugal que condenou os inconfidentes quando o Brasil ainda era uma colônia dos portugueses. Apenas nos últimos anos do Império, quando a ideia de República começava a ganhar força, a memória histórica do movimento foi resgatada e seus participantes foram ganhando ares de heróis e visionários.

Num canto esquecido da Secretaria de Estado do Império foram descobertos os Autos da Devassa: documento oficial com o registro dos depoimentos dos indiciados pela participação na Inconfidência. Esse documento é uma fonte privilegiada nas pesquisas sobre a Inconfidência Mineira. Historiadores brasileiros e estrangeiros debruçam-se sobre os Autos da Devassa procurando compreender esse rico e complexo movimento que ecoou das Minas Gerais no final do século XVIII.

Foi com a chegada da República em 1889 que a Inconfidência Mineira foi recuperada do imaginário popular e seus personagens transformados em figuras míticas da nossa História Política. Tiradentes foi alçado ao patamar máximo dos heróis nacionais. Mitos costumam dizer mais sobre a História que os criou do que sobre si mesmos.

A República precisava de um mito fundador e a Inconfidência serviu bem a esse propósito devido a seus elementos dramáticos e seus ideais republicanos. No entanto, esses ideais não eram tão arraigados e unânimes entre os inconfidentes, pois nem todos eram a favor da República ou da Abolição da Escravatura. Mas o simples fato desses temas terem sido estudados, discutidos e pautados na Inconfidência Mineira já a torna singular e potente.

A República foi a responsável, quase um século depois, pela mitificação de Tiradentes. Os republicanos ressaltaram o aspecto religioso do mito, apesar da Inconfidência não ter sido um movimento religioso como muitos outros durante o Império. Tiradentes permaneceu na História com uma imagem semelhante à de Cristo e resignado ao sacrifício. Desde então, os heróis nacionais nasceram marcados por uma aura religiosa, com a missão de salvar a Pátria. Até quando procuraremos, esperaremos ou elegeremos “salvadores da Pátria” que usam discursos religiosos e moralistas para ganharem apoio popular ou serem chamados de “Mito”?

Durante a Ditadura Militar de 1964, Tiradentes foi apropriado pelos dois grupos em disputa política. O Tiradentes representado pelos militares era um soldado disciplinado que queria transformações através da Ordem. Já os movimentos de resistência que lutavam contra a Ditadura” representavam um Tiradentes revolucionário, preocupado com as necessidades do povo, defensor das liberdades e opositor aos poderes arbitrários.

Mais importante do que polemizar se a Inconfidência foi um movimento idealista ou materialista; se Tiradentes foi o líder ou simplesmente o bode expiatório, se as representações construídas sobre os inconfidentes estão corretas é refletirmos sobre o significado da Inconfidência Mineira na sua época e ao longo da História Brasileira até os nossos dias.

O fato de alguns homens de faixas etárias, classes sociais, formações e interesses variados se reunirem para debater a situação do país, sonharem e planejarem alternativas, polemizarem questões em pauta pelo mundo (como República e Abolição) e proporem ações concretas de resistência às deliberações superiores que julgavam injustas tem, certamente, uma relevância enorme. Fazer isso no Período Colonial demandava, acima de tudo, muita coragem. Era extremamente arriscado contestar a Coroa Portuguesa e muitos inconfidentes pagaram caro por isso.

Mesmo tendo sido um movimento fracassado, que não conseguiu se efetivar, a Inconfidência Mineira permanece intrigando estudiosos e cidadãos que buscam compreender sua trama e personagens. Os inconfidentes foram homens que – movidos por ideais ou interesses particulares – saíram da “zona de conforto” e fizeram diferença em sua época, propondo algo novo e que consideravam mais justo. Essa é a imagem da Inconfidência Mineira que prefiro recuperar quando se comemora o dia de Tiradentes e, assim, poder inspirar novos inconfidentes.