2023 foi um ano marcado por tensões geopolíticas internacionais, assim como pela continuação da crescente aprovação popular de movimentos extremistas e populistas um pouco por todo o mundo. Mas foquemo-nos por agora no mais óbvio elefante da sala. Dez anos após o seu lançamento, 2023 viu chegar ao fim da série japonesa Shingeki no Kyojin. Não sendo um evento com repercussões políticas à escala global, não deixa, todavia, de ser curiosa a coincidência cronológica da sua conclusão. O último episódio de 'Attack On Titan', em inglês, ou Ataque de Titãs na sua versão portuguesa, saiu em novembro.

Durante este mês assinalar-se-iam ainda um ano e nove meses desde o início da invasão russa da Ucrânia; dois anos e meio desde o começo da guerra civil em Myanmar; um novo escalar da tensão em Uganda e na República Democrática do Congo, onde a insurgência das Forças Democráticas Aliadas se vem mantendo desde a década de noventa. A este festim sangrento, juntaram-se recentemente Israel e o Hamas, cujo clima de tensão deu lugar a uma ofensiva em larga escala no território palestiniano, a qual, à data de escrita deste artigo, conta com mais de 26 mil mortos.

Faz sentido sugerir tal comparação? Num lado, violência desenfreada que mata, fere, desaloja, destrói no mundo real. No outro, uma série de animação baseada na manga criada por Hajime Isayama que entretém, desenvolve, provoca, edifica – dentro da segurança do pequeno ecrã. É uma analogia absurda se o foco analítico se mantiver apenas na dicotomia realidade/ficção. Não descurando a distância diametral entre ambas as dimensões, este texto centrar-se-á numa análise crítica dos temas que AOT procura explorar. Em particular, de que formas as representações de violência e opressão retratadas no pequeno ecrã se relacionam com as conjunturas sociopolíticas que caracterizam a humanidade ao longo da História?

Desconstruamos a tendência generalizada que insiste em ver animação como um formato dirigido sempre a um público mais infantil. Esta associação mais não é do que uma tentativa fútil de menosprezar uma forma de arte cujo mérito, felizmente, tem vindo a ser cada vez mais reconhecido fora dos seus círculos de origem. O crescente sucesso de séries de animação tem contribuído para a desconstrução e reapreciação deste formato muito para além do espectro infanto-juvenil.

Peças como Rick And Morty, fruto da colaboração entre Justin Roiland e Dan Harmon, e Invincible, de Robert Kirkman, Ryan Ottley e Cory Walker, têm vindo a provar que este é um meio que abre portas à exploração dos mais variados temas de modos originais e incomparáveis a outros tipos de produções. Dando uma oportunidade ao formato, confirmar-se-á que não são produzidos tendo um público infantil em mente. Longe disso, a exploração crua que Attack On Titan faz de tópicos como guerra, trauma e genocídio referencia as Teorias do Ciclo Social, uma posição sociológica amplamente difundida relativamente à história da humanidade.

Neste mundo, as muralhas que cercam o que resta da humanidade são vistas como a última linha de defesa contra o terror dos titãs. Estas figuras gigantescas, com traços grosseiramente mutilados, personificam o perigo do desconhecido. É nesta linha binária, materializada por uma muralha física, que se constrói a base temática constante em AOT: a oposição entre as noções de “bem” e de “mal” associadas ao binário “nós” versus “eles.” “Nós,” isto é, os humanos residentes dentro da muralha, versus “eles,” os “outros” associados a um risco de extermínio total.

A muralha em questão é uma linha recorrente tanto no pequeno como no grande ecrã, como também deste lado da 6ª barreira. A ideia de que, ao acentuarmos essa fronteira, nos estamos de alguma forma a proteger dos perigos representados pelo “outro” revela a ansiedade ingénua por detrás da evolução da humanidade: o grande apagão. Após décadas de esforços constantes, de superação de obstáculos, de passagem por todas as cores da palete emocional humana, as nossas pegadas não deixaram qualquer rasto. A morte tem mais significado do que a vida.

As dúvidas que nos levaram a criar uma pletora de religiões, superstições e mitos demonstram bem esse pavor ao esquecimento. É por isso que acrescentamos algo mais às necessidades básicas de procriação. O grande objetivo de todos os seres vivos é transmitir informação genética, manter a espécie. A particularidade humana dita a transmissão de informação imaterial em conjunto com a biológica. Esta é uma outra forma de manter a nossa espécie – ao transmitir informação social e cultural estamos a dar às futuras gerações ferramentas que as ajudarão a identificar-se com grupos de pessoas específicas. Desenvolve-se assim um sentimento de pertença a esses grupos e à humanidade no geral. Os grupos a que sentimos pertencer são humanizados aos nossos olhos. Isto é, pondo de lado o pormenor de sermos indivíduos da mesma espécie, é mais difícil humanizar alguém com quem não temos um ponto em comum à partida.

Essas mesmas dúvidas, esses mesmos “esquecimentos,” encontram-se por detrás de muitas narrativas que vêm tentar justificar a opressão daqueles que vemos como “os outros.” Expressões como “nazis na Ucrânia” e “povo de terroristas” puxam a brasa à sardinha do medo da diferença, evidenciado uma suposta necessidade de atacar antes de ser atacado. Isto é, para nos protegermos a solução passa por adquirir poder para subjugar, conquistar, para evitar a possibilidade de sermos subjugados, conquistados, pelo poder de outrem. Como se apenas existissem essas duas opções.

Em AOT, vemos um constante rebobinar dos erros do passado que são transmitidos de geração em geração. Ambos os lados da muralha são vítimas das consequências da sua própria opressão, na medida em que se resignam a aumentar a distância entre si e o “outro,” neste caso acentuada pelo simbolismo da muralha e, em particular, do oceano. O oceano que constitui um entrave ao estabelecimento de relações entre os habitantes das duas margens é o mesmo oceano que serve de motivação a muitas personagens na ilha para continuarem a lutar pela liberdade. Para Armin Arlert, por exemplo, o oceano é um símbolo do desconhecido que ambiciona explorar com os seus camaradas. Mesmo sem certezas quanto à existência da grande massa de água salgada, a sua recusa em aceitar o confinamento da muralha inspira os seus colegas a persistirem apesar das dificuldades.

Fora do pequeno ecrã, os oceanos são cada vez menos representativos de perigos desconhecidos e sim como mais uma forma de cruzar a distância entre países e pessoas. Mas as muralhas erguidas ao longo da História persistem e muitas delas têm inclusive sido re-imaginadas de acordo com o interesse geopolítico vigorante. Em muitos casos este amplifica a distância entre os lados delimitados por uma parede metafórica, impedindo-os de transpor a fronteira entre si, isto é, nas palavras de Armin, de “explorar o mundo lá fora.”