Pobres criaturas, será? Este foi o questionamento que fiz ao final da sessão de cinema. Nas descrições sobre a trama encontramos que o filme se trata de um romance de ficção científica, mas ele vai além, é cômico, é polêmico e intrigante. E eu falarei sobre um recorte da trama, já que foi o que ficou ecoando por dias em mim.

Lançado em fevereiro de 2024, o filme Pobres Criaturas, com direção de Yorgos Lanthimos e produzido por Emma Stone, que também atua no longa, está ganhando destaque ao longo dos dias em praticamente todas as premiações cinematográficas, inclusive com várias indicações ao Oscar.

Bella Baxter, personagem interpretada por Emma Stone, é uma pobre criatura, ao menos é o que pensamos no começo da história. A personagem vai crescendo ao longo do filme, de forma literal, já que ela tem o cérebro de uma criança recém-nascida graças ao transplante cerebral realizado por Godwin Dafoe, interpretado por Willian Dafoe, "pai" de Bella.

God, como é chamado por Bella, foi vítima dos maus tratos de seu pai. O cientista realizou diversas experiências com o próprio filho, deixando-o com inúmeras marcas e sequelas pelo corpo. Por causa dessas marcas e deformidades, ele não é bem-visto pela sociedade, sendo considerado um monstro. As deformidades em seu rosto lembram muito as de Frankenstein, que é uma das referências utilizadas na elaboração do roteiro deste filme.

Por ser esta pobre criatura indesejada, God constrói sua casa como uma fortaleza, reproduzindo as atitudes do pai ao realizar diversos experimentos. Ele se torna o "o Deus", ao menos dentro de sua casa. Bella, que ele considera uma filha, é fruto de um experimento. God não sabe como ser um pai da maneira "tradicional", o ser pai para ele é a repetição do que viveu com seu próprio pai. Desta maneira, ser pai é usar o corpo do outro em seus experimentos.

Ele mantém um laboratório em sua casa e passa seus dias examinando corpos, estudando-os e fazendo experimentos. Foi assim que Bella "nasceu", ele encontrou o corpo dela logo após seu suicídio, segundo o personagem: "é raro encontrar um corpo fresco, logo após a morte".

O corpo da jovem, este corpo fresco, foi levado para o seu laboratório, ela estava grávida e a criança ainda estava viva, por isso God faz o transplante do cérebro do bebê para o corpo da jovem. E é assim que Bella nasce.

E por que eu contei este breve relato sobre o filme? Porque God, o pai todo poderoso, não é o pai da Castração, o que vem com a lei e castra a criança e barra a mãe, afinal Bella é um experimento, então ele quer saber quais os potenciais desta experiência. Quem castra, quem barra é Max MacCandles, interpretado por Ramy Youssef, quando diz que não é educado se masturbar em público.

É importante ressaltar que o termo castração1 aqui utilizado não é o mesmo do entendimento do senso comum, ou seja, não significa a mutilação dos órgãos sexuais. Esta castração foi sofrida por God por seu pai, ele é eunuco, e assim, estéril. A castração na qual me refiro é o termo de acordo com a psicanálise, que entende que o complexo de castração é uma experiência psíquica vivida pela criança em seu momento de formação nos primeiros anos de sua vida.

Max MacCandles é o que desempenha a função paterna, isso significa que é ele quem barra Bella em seus impulsos de satisfação imediata mostrando a ela que na sociedade em que ela vive existem leis que nos norteiam e culturalmente não são aceitos certos comportamentos. Assim, Bella entende que não pode se masturbar2 em público e começa a perceber que deseja outras coisas, que existem outras coisas que também podem fazê-la feliz. Bella começa a desejar conhecer o mundo à sua volta.

Decidida, comunica sua decisão a God e a Max, neste momento Noivo dela, e promete retornar, mas antes quer viver para além daqueles muros. Ela viaja para Portugal com Duncan Wedderburn, interpretado por Mark Ruffalo. Duncan vê em Bella uma mulher, uma bela mulher, para ele, ela não é um experimento.

Ao longo de sua viagem fica claro que ela não entende as regras culturais e sociais. Ela não entende o moralismo já que é regida pelo princípio do prazer imediato, em termos psicanalíticos podemos entender que ela é puro Id, puro desejo! Desejo não apenas sexual, e isso ela tem muito, mas também desejo pelo saber, por conhecer, por viver.

Bella é livre!

Após anos fora da casa de God, Bella se transforma em uma mulher decidida, firme, dona de seu corpo e de seus movimentos. Uma mulher determinada!

E quem afinal são as pobres criaturas? Foi o que saí da sessão pensando, Bella com certeza não é uma pobre criatura. Os pobres são outros, os que se limitam, os que não se permitem, os que vivem em seus castelos com muros altos se privando de ver o mundo.

Bella ao olhar pelo horizonte e olhar além, vai em busca de realizar seus desejos, sejam eles quais forem, não se limitando à fala do outro, mas se permitindo. E mesmo vivendo tudo isso, ao final ela decide voltar, se casar e seguir alguns dos passos do pai. Bom, isso é assunto pra outro momento!

O importante é que Bella nos faz pensar que é preciso nos permitir.

Notas

1 Freud, S. O ego e o id. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Trad. de José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1923-1925. v. XIX.
2 Freud, S. A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Trad. de José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1923-1925. v. XIX.