A história

À beira mar da praia de Boa Viagem, cartão postal da Zona Sul da cidade, havia um espaço vazio… Amplo, ensolarado, varrido por brisas tropicais, abrindo-se generosamente para o Oceano Atlântico. Era uma “joia rara”. Uma clareira de 27.000 metros quadrados em meio à massa compacta de construções verticais do bairro e, principalmente, da Avenida Boa Viagem ‒ que se estende ao longo de 6,5 Km da orla recifense.

O sítio, inserido entre duas avenidas importantes, resistiu incólume ao intenso processo de urbanização ocorrido ao seu redor; ao “boom” imobiliário que trouxe as famílias do centro a residir na Zona Sul da cidade, com seu ápice por volta dos anos 70 do século passado.

A resistência de um espaço aberto em local de tamanha valorização imobiliária se deveu ao fato do mesmo pertencer à Aeronáutica. O local fora, nos idos da Segunda Guerra Mundial, uma reserva, uma base brasileiro-americana para instalação de artilharia, a fim de “recepcionar” os navios alemães que porventura avançassem por águas brasileiras, com destino à costa recifense. A posição geográfica do terreno era estratégica, como “portas abertas” para o mar e, apesar de finda a Guerra e com ela as motivações originais de sua destinação, o terreno permaneceu vazio, ainda sob domínio da Aeronáutica, por décadas, tendo sido pensado como um local para a possível construção de moradias para militares, o que, felizmente, não ocorreu. E a cidade só teve a ganhar…

Em 2004, os moradores de Boa Viagem entregaram ao então Presidente Lula um abaixo-assinado que pedia a cessão dos terrenos da Aeronáutica no bairro para uso público e, ainda no mesmo ano, o então prefeito do Recife, João Paulo, reuniu-se pela primeira vez com autoridades da Aeronáutica para tratar sobre a construção de um parque no local.

As negociações seguiram intensas e a disponibilização do terreno se concretizou com a assinatura do contrato de cessão, em setembro de 2006. Rapidamente, foi anunciado pela Prefeitura que o arquiteto Oscar Niemeyer seria o autor do projeto do Parque, o que causou muito impacto, por sua relevância, pois o único projeto do arquiteto em Recife, uma construção residencial na mesma avenida, havia sido demolido muitos anos atrás, dando lugar a mais um espigão.

Boa Viagem hoje se constitui em um dos maiores bairros do Recife. Abriga uma população de cerca de 123.000 habitantes, de acordo com o censo demográfico de 2010. Construções e mais construções foram delineando “aos muitos” a verticalidade de seu atual perfil. A região possui edifícios de alto padrão construtivo, com altos gabaritos, em sua grande maioria com função habitacional. Possui uma população com poder aquisitivo diferenciado e exigências cada vez maiores por serviços urbanos de qualidade.

A “encomenda” dos moradores para a região do parque era de uma área verde, sombreada, livre de construções. Da parte da Prefeitura, a demanda ao arquiteto foi por um centro metropolitano de cultura e lazer... Um parque cultural a ser construído no cobiçado terreno. Devido a esse conflito de interesses e usos e, de um ponto de vista mais prático, pela eloquente e ferrenha oposição política na esfera municipal, veio a grande polêmica quando foi divulgado o projeto do escritório do mestre Niemeyer... “É árido”, “é pesado”, “faltam árvores”, “é horrível!”… Por todos os motivos possíveis, mas, principalmente, pela concepção em grandes blocos construídos, quase brutais para a extensão espacial e para a expectativa existente de que a área fosse um jardim urbano. O processo de construção do parque foi difícil. O assunto tomou a cidade, a mídia local e nacional, protagonizado por movimentos de moradores, pela oposição política ao governo municipal, chegando ao Ministério Público. O grau de rejeição ao projeto foi estrondoso. A polêmica se intensificou quando foi decidido o nome do parque… A homenagem à mãe do ex-presidente Lula, “Dona” Lindu, como era conhecida, soou à população como uma “concessão” àquele que havia viabilizado o repasse do terreno ao município e era partidário do então prefeito.

A justificativa oficial pela escolha se baseou na homenagem extensiva a todas as famílias que migraram para a Região Sudeste do país, especialmente para o estado de São Paulo, em busca de trabalho e sustento, no século XX, motivados pela fuga da seca do Sertão nordestino. No entanto, a tentativa de vincular o nome do parque a essa população soou forçada e, excetuando-se a escultura do artista Abelardo da Hora, que retrata uma família de “retirantes” ‒ como eram chamadas as vítimas da seca que migravam, não há nada que se possa encontrar que guarde congruência entre a(os) homenageada(os) e o ambiente.

Em entrevista da época, Niemeyer demonstra sua perplexidade e certo ar de tristeza diante da alta rejeição ao projeto (1) e explica as motivações do partido adotado para sua concepção do espaço.

Com esse arsenal de problemas, a construção, cuja conclusão estava prevista para menos de um ano, chegou a ser embargada algumas vezes, o que levou o cronograma a exatos mil dias… O Dona Lindu foi inaugurado, enfim, em março de 2011, e as críticas ferrenhas ao parque só arrefeceram quando o tempo mostrou a funcionalidade dos belos elementos construídos.

O projeto

O parque possui duas zonas claramente delimitadas: uma grande esplanada cultural e uma parte posterior, uma praça, com preponderância de solo natural e ajardinado, de características eminentemente voltadas para o lazer das atividades outdoor.

São 6.280.65 m² de área construída e o programa arquitetônico inclui teatro, pavilhão de exposições, pista de skate, playground infantil, quadra poliesportiva, academia ao ar livre, passarelas com pórticos e jardins, pista de cooper, área para restaurante, estacionamento com 327 vagas, banheiros e fraldário.

O plano do Parque previu parâmetros de acessibilidade para pessoas com deficiência ou com dificuldades de locomoção. O teatro, por exemplo, possui lugares para cadeirantes e poltronas para pessoas com obesidade. Há rampas de acesso por todos os lados, banheiros adaptados, cabines de audiodescrição para deficientes visuais e, no bloco do pavilhão de exposições, um elevador de acesso ao mezanino.

A zona mais próxima à praia, contígua à Avenida Boa Viagem, que abriga os equipamentos culturais, constitui-se por um arranjo arquitetônico que impacta e causa surpresa a quem passa: dois grandes elementos cilíndricos de total brancura, construídos em concreto e unidos por uma marquise sinuosa que não só faz a aproximação dos dois elementos, como marca a escala humana, criando entre os mesmos um espaço aberto que se compõe em ambiente: a esplanada cultural.

Os edifícios e a marquise “abraçam” a esplanada, fazendo também o agenciamento do bloco administrativo do parque, que traz, diferentemente dos outros três elementos, um gabarito mais baixo e algumas arestas, numa volumetria mais retilínea… O largo espaço da esplanada se abre generosamente para o mar, ao mesmo tempo em que protege o público e o acolhe.

O volume maior, um tronco de cilindro, possui um corte oblíquo, um chanfro, e dele se “desprende” uma marcação em helicoide que surge pela criação da rampa de acesso ao teatro. Tudo se encaixa. Este é o bloco do teatro Luiz Mendonça (2) com 540 lugares – assim batizado em homenagem ao teatrólogo, ator e professor de Artes Cênicas pernambucano, escritor do primeiro texto da Paixão de Cristo da cidade-teatro de Nova Jerusalém, situada a 184 Km do Recife e considerada o maior teatro ao ar livre do mundo (3)… Mas isso já seria assunto para outro texto! Voltemos ao Dona Lindu…

O teatro possui uma coberta em laje plana chanfrada, tornando-se um tronco de cilindro. Esse corte é decorrência da necessidade de um pé-direito interno mais alto na parte voltada para a esplanada, que permitisse a elevação da porta que se abre em guilhotina, revertendo o palco para o exterior, para a esplanada cultural. O palco reversível, com 20 metros de largura e seis de comprimento, apresenta uma dupla função: do interno e do externo. Faz do teatro um dos grandes trunfos do projeto. Uma solução genial para possibilitar abrigar um show intimista em seu interior ou uma “festa” para milhares na esplanada cultural, democratizando o acesso aos espetáculos.

No outro volume, também cilíndrico, foi instalada a Galeria Janete Costa, com 1.491,50 m2 divididos em uma sala térrea e um mezanino ligados por uma escada escultural. A galeria assim foi nomeada em reconhecimento à atividade da arquiteta e designer pernambucana, falecida em 2008, que contribuiu em muito para a cultura local, tendo sido estudiosa da arte popular, designer de produtos e curadora de inúmeras exposições no Brasil e também da exposição Carreu du Temple, Paris, 2005, no ano do Brasil na França, a convite do governo brasileiro.

Nestes seis anos de vida, a galeria já abrigou inúmeras montagens, dentre as quais a que homenageou o próprio Oscar Niemeyer, em comemoração aos seus 103 anos de idade. A exposição retrospectiva de sua obra exibiu maquetes, esculturas e croquis. Foi muito rico e interessante ver as obras do artista-arquiteto sob uma de suas próprias criações, fazendo com que a galeria e todo o parque se incorporassem à exposição, como “peças” a serem observadas e apreciadas no conjunto.

Ainda há quem reclame do reflexo do branco dos dois volumes principais e da certa “brutalidade” visual ¬que imprimem ao primeiro olhar. Queriam um parque cheio de árvores para passear quando há “apenas” 6,5 Km de calçadas e coqueiros ao longo da Avenida Boa Viagem para fazê-lo… Hoje, as 350 árvores plantadas no parque se mostram em franco desenvolvimento. A natureza e o tempo vêm preparando a feição final do projeto, com árvores e arbustos que crescem, que já sombreiam a praça posterior à esplanada cultural, o caminho de pórticos e a região do playground.

Hoje o parque já virou ponto de encontro e de referência. Já abrigou de exposição de orquídeas a retransmissão de jogos de Copa do Mundo… Se deveria haver mais vegetação? Se deveria ser apenas uma extensa área arborizada? O mestre Niemeyer pensou o projeto de um parque cultural, dotando-o de uma esplanada de múltiplos usos; de um teatro que se abre para essa esplanada e convida a milhares para consumir arte. Dotou-o de um pavilhão com pé direito duplo, permitindo a montagem de exposições de peças que necessitam de maior altura para serem instaladas. Pensou nas áreas verdes, as quais representam 60% da área do terreno, e protegeu-as dos fortes ventos implantando-as na parte do terreno mais distante do mar, meio que protegidas pelas construções projetadas para o parque, estes com implantação mais próxima à praia. Pensou uma área de transição: uma marquise que une os blocos, sombreia, passeia pelo terreno, criando visuais incríveis com suas curvas e sombras e “abraçando” a área da esplanada, como quem chama para ver o espetáculo, para ver se abrir a porta externa do palco ou, simplesmente, contemplar as crianças que brincam.

Eu já cheguei até a pensar que talvez o branco, tão branco, dos blocos construídos pudesse ter mais cores… Mas uma reflexão me traz que seria reduzido seu impacto, sua surpresa e seu contraste com o mar do Recife, com o céu e com o parque verde que também se alegra na parte posterior do terreno... Quem alteraria cores, colocaria ou tiraria um girassol dos vasos de Van Gogh por ter achado muito ou pouco? A obra de um mestre que criou beleza pelo mundo inteiro ao longo de quase um século de atividade arquitetônica, merece todo meu respeito.

O espaço hoje vive. Seja nas grandes festas populares, nas apresentações da Orquestra Sinfônica do Recife ou nos skatistas que voam sob sua marquise e na piscina em formato bowl. Nos senhores e senhoras que realizam sua caminhada matinal à sombra do passeio de pórticos; nas crianças que brincam no playground e correm livres sob o sol da esplanada ou à sombra das árvores… A vida passa na corrida nos atletas que circulam no calçadão da praia de Boa Viagem, no caminhar do cidadão comum que passeia com seu cachorro. As árvores crescem e a aridez tão combatida se perde… Transforma-se. O Dona Lindu recebe centenas de pessoas a cada final de semana. O projeto deu certo e pôs por terra as resistências surgidas em sua grande parte por motivações políticas e não propriamente técnicas. É um parque metropolitano que agrega múltiplas funções e públicos.

O bairro hoje possui um teatro. Fato marcante. Algo que só existia no vizinho bairro do Pina, e para apenas 332 pessoas (o Teatro Barreto Júnior). A esplanada brilha sob o sol do Nordeste e se abre para o mar, abrigando espetáculos os mais variados. O Parque Dona Lindu pode ser vários: o do dia, o da tarde, o da noite. O das crianças, o dos adultos, o dos artistas, o do grande público ou, simplesmente, o que aguarda e recebe a visita de quem quiser chegar.

Quem viveu tanto bem sabia que um projeto não se completa no papel e nem com sua inauguração… Elementos como o próprio público, o passar das estações, o crescimento da vegetação, complementam o trabalho. E, ao redor do pavilhão de exposições, palmeiras imperiais garantem que ele só estará pronto em mais algumas décadas… A vida do parque é dada ao projetar das pessoas: pelos caminhos de desejo que fazem, pela frequência e pela ausência.

Superadas polêmicas e desafetos, pela afirmação do talento e da beleza sobre a criticidade vazia, hoje o parque é um total sucesso, além de um fato arquitetônico marcante na paisagem da urbis. A população dele se apropriou. “A praça é do povo, como o céu é do condor”, como bem disse o poeta brasileiro Castro Alves.

E todo esse movimento só vem a ratificar as palavras do longevo mestre Niemeyer, ao se referir à vida do Parque: “Ali deve ser qualquer coisa que dê a ideia de que o Recife está rejuvenescendo”...

Vindo de um homem que conseguiu rejuvenescer durante seus quase 105 anos de vida, trabalhando e criando beleza por quase um século, o comentário parece cair como uma folha de pau-brasil no chão do parque: simples, delicada e real.

O mestre faleceu em dezembro de 2012, quando o Dona Lindu tinha pouco mais de um ano de vida. Deixou sua marca indelével pelo mundo afora e, em Recife, um exemplar de sua extensa obra: o Parque Dona Lindu… Que pode até mudar de nome, como querem alguns jornalistas, mas continuará a viver e orgulhar os moradores da cidade.

Notas
(1) www.youtube.com/watch?v=-7k1guJyPuc
(2) www.recife.pe.gov.br/2011/03/18/biografias_175871.php
(3) www.novajerusalem2014.com.br

Vídeo do piloto AirCraft Nilton Cavalcanti