“Quem conta um conto, acrescenta um ponto.”

Para além das definições eruditas, normalmente tão contextuais quanto pomposas, talvez este provérbio português ofereça uma ideia bem mais satisfatória e abrangente do que pode significar o conceito de “cultura”. Nele estão sugeridas as suas duas dimensões fundamentais: por um lado, o assentamento de comportamentos num determinado grupo; por outro, a incorporação gradual de novidades nesses comportamentos.

Estas novidades destacam-se precisamente porque contrastam com a regra pré-existente, sobre a qual determinada cultura se constrói. Porém, e embora o mantra da novidade seja tantas vezes sublinhado, especialmente pelo mundo da publicidade, diria que o elemento fundamental e unificador da cultura globalizada é a repetição. Grande parte das nossas vidas é regulada por uma forte componente repetitiva: das rotinas quotidianas, por muito que tentemos fugir delas, ao spin noticioso e mediático, das medidas standard do mobiliário que temos em casa à insistência ad nauseam em determinada ideia-chave no discurso de um político, a eficiência dos nossos sistemas sociais baseia-se na permanência de determinados “módulos” que constituem a base daquilo que retemos, filtramos e, eventualmente, adaptamos.

Por defeito de formação, vejo as cidades e a arquitetura como uma expressão física das culturas humanas. Portanto, penso que é possível observar constantemente este princípio de repetição no mundo edificado que habitamos, quer este se concretize de modo planeado quer de modo empírico.

Partirei deste ponto para acrescentar novos contos. Considerando a tendência de crescimento da população mundial e a sua concentração em megalópolis cada vez mais extensas, importa pensar a relação entre as condições de produção destes aglomerados e a sua capacidade de albergar diferentes comportamentos, diferentes culturas. Por outras palavras: como é que um processo de repetição, tão fundamental na construção de cidades crescentemente complexas, pode ser compatibilizado com a inevitabilidade da diversidade?

Nesta altura, o leitor poderá pensar que está na presença de mais um texto saudosista que lamenta a perda de uma cidade idílica, ainda que romanceada. No entanto, não pretendo fazer uma apologia do “autóctone” ou do “artesanal”, se se entender estes termos como necessariamente opostos à “repetição maquinista”. Pretendo, sim, sugerir que a variabilidade e a diversidade expandem e tornam mais inclusivos os nossos edifícios e cidades, mesmo os hipertecnológicos ou aparentemente monótonos.

Voltando à ideia de que há duas maneiras principais de gerir o relacionamento entre a repetição e a sua subversão, comparemos alguns exemplos. A favela brasileira, o musseque angolano e demais derivações deste género de extensão urbana poderão ser entendidos como uma resposta empírica à necessidade de criar um grau de personalização dentro de uma estrutura relativamente repetitiva. Embora algumas dimensões e volumetrias sejam padronizadas, tal deriva mais da circunstância do que de um planeamento integrado. A personalização é, portanto, uma característica intrínseca destes espaços urbanos e domésticos.

Noutro pólo poderemos incluir a abordagem racional que, em certa medida, definiu o modelo de explosão urbana a partir do século XX, na sua vertente planeada e burocrática. A exaustão e deturpação deste modelo, herdeiro do iluminismo francês, do movimento moderno ortodoxo e com influências dos ideais metabolistas, está na origem de grande parte dos complexos habitacionais copy-paste que tendencialmente vemos nas megalópolis mundiais. Neste caso, procura-se a repetição tipológica, programática e formal, sendo esta regra normalmente quebrada não por motivos associados a um planeamento humanista, mas quando se pretende introduzir componentes “economicamente mais atrativos”.

Nesse sentido, coloca-se outra pergunta: que forma tem a repetição? Será imperativo que a repetição programática e tipológica resulte numa repetição formal imediatamente clara?

Na cidade japonesa de Gifu, o atelier de arquitetura SANAA (de Kazuyo Sejima e Ryue Nishizawa), exemplificou com brilhantismo o potencial positivo desta relação entre repetição e variedade na construção das cidades do futuro. Através de uma grande diversidade de tipologias habitacionais, com especial foco nos fatores que as diferenciam – modo de ingresso, tipos de espaço exterior e semiexterior, graus de privacidade das divisões internas –, foi possível construir um bloco urbano onde a adaptação de uma megaestrutura a variadas culturas de vida distintas se compatibiliza com o modus operandi das indústrias de construção, tendencialmente repetitivo, mas também com os ideais de uma expansão urbana, eventualmente, exponencial. Se a favela é uma subversão a posteriori da repetição modular, então exemplos como o de Gifu demonstram uma intenção de superar metodicamente a repetição estéril, no contexto da arquitetura. O bloco Kitagata pode ser entendido como um ponto de desenvolvimento ótimo de ideias construídas durante o último século e meio; uma síntese da cidade tipológica de Aldo Rossi, da cidade programática de Rem Koolhaas e da cidade moderna de Le Corbusier.

Assim se acrescentam pontos. Veremos como evolui o conto.