No contexto do fim do século XVIII e da desagregação do absolutismo que se viveu com a revolução francesa, a arquitectura proposta por Claude-Nicolas Ledoux, para além de acompanhar as alterações sociais que estavam a acontecer na época, surgiu, ela própria, como acto de legitimação da disciplina, no modo como dominava ou propunha dominar a matéria, as formas e os espaços, antecipando soluções e ganhando, dessa forma, uma autonomia até então inexistente.

Talvez motivado pelas suas origens humildes, ou pelo facto de, no início de carreira ter lutado pelo salário e pelas oportunidades, mergulhado na prática quotidiana dos espaços regionais(1), ao contrário de alguns dos arquitectos seus contemporâneos, com quem partilhava a defesa de que toda a obra deveria ser submetida ao exercício da qualificação do belo, desde a cabana mais pobre até aos palácios do rei, a posição de Ledoux em relação à arquitectura não era exactamente a mesma da de arquitectos como Étienne-Louis Boullée(2). Apesar de ambos serem considerados muito próximos do regime, Ledoux distinguiu-se por procurar servir-se da arquitectura e de meios próprios da disciplina, para dar resposta às necessidades que as transformações sociais da época exigiam.

A grande diferença para com o passado tinha a ver com a liberdade de significado das formas, ou seja, no tempo novo, pós-revolução, a Arquitectura deixou de ter que representar outra coisa que não ela própria. Acompanhando o ocaso da unidade barroca, não haveria lugar a representações ou a valorizações decorativas, e a maior exigência para o edifício seria a da sua habitabilidade.

Por oposição ao princípio barroco, em que as partes estavam todas ligadas e representavam um todo que não se poderia fragmentar, pois perderia sentido, Ledoux, com o seu sistema de pavilhões, seja nas Salinas em Arce et Senans, nas barriéres da nova cintura de Paris, ou ainda no projecto da cidade utópica de Chaux, propôs que as partes, embora unidas, tivessem valor arquitectónico por si próprias. Ao fazê-lo, contribuiu decisivamente para a sobrevivência da própria disciplina e a sua atitude representa uma reacção à circunstância que emoldurava então o exercício da Arquitectura(3), numa época em que vinha perdendo força o autoritarismo para a implantação de uma arte pública oficial, a que impunha o princípio do seguimento de uma regra clássica como caminho obrigatório para atingir a beleza(4) e em que se criou uma tendência para limitar o campo de acção da Arquitectura para questões de decoração e embelezamento final.

Para Ledoux, pretender atribuir um significado orgânico a uma matéria inerte era um embuste e não fazia qualquer sentido. Por outro lado, associando a recusa da Arquitectura como mero embelezamento final à utilização sóbria das pedras e dos materiais, que deixam de ser pano de fundo para motivos decorativos ou de representação, as paredes reganham o seu significado mais puro – o da delimitação do espaço. A transformação operada pela arquitectura de Ledoux, consistiu na passagem de uma legitimidade alheia às formas, aos materiais e à própria Arquitectura, que era vista como um modo útil de dar trabalho aos arquitectos e de celebrizar a grandeza do rei e do estado(5), para uma legitimidade própria da disciplina, pese embora ainda com uma máscara neo-clássica, que se conservou durante as primeiras décadas posteriores à revolução mas que, segundo Emil Kaufmann, esteve na base de toda a arquitectura europeia que se produziu desde então(6).

A ideia de unidade não era menosprezada pela fragmentação ou individualização das partes. Pelo contrário, para Ledoux, a unidade do todo era essencial na configuração dos corpos. Para esse efeito, seria suficiente e essencial estabelecer relações de movimento, de ritmos, ou motivos singulares, que resultavam numa harmonia clara, para a qual não era necessário recorrer a um contacto material imediato. Desse modo, através da valorização e autonomia das partes, valorizava-se o todo.

Anthony Vidler refere que a melhor forma de entender verdadeiramente o legado de Claude-Nicolas Ledoux é através de um olhar histórico que compreenda a Arquitectura na sua complexidade social, económica, estética, onde o desenho assume um papel complexo e ambíguo(7). Acrescentamos nós que a sua arquitectura, mais do que condicionada pelas circunstâncias ou contexto da época, foi ela própria criadora de circunstância, ganhando dessa forma, autonomia propositiva.

Fernando Távora realçou precisamente essa característica, ao enunciar que, no final do século XVIII, havia a necessidade de encontrar, dentro da Arquitectura, as formas que a ajudassem a modificá-la, apesar da circunstância ainda vigente, e Ledoux traduziu na Arquitectura as alterações que a vida das pessoas sofria. A acção de Távora, foi feita no contexto opressivo português dos anos cinquenta, época em que o Estado Novo procurava a afirmação de uma linguagem arquitectónica nacional, tentando dessa forma, limitar a autonomia da disciplina, colocando-a na dependência da linha oficial do estado.

Foi nessa década que se realizou em Portugal o Inquérito à Arquitectura Regional Portuguesa, promovido pelo Sindicato Nacional dos Arquitectos e pelo Ministério das Obras Públicas e que viria a resultar no livro Arquitectura Popular em Portugal. Fernando Távora, responsável pela equipa que estudou o Minho, refere na nota introdutória do livro o princípio que norteou o trabalho de campo. Trata-se de uma Arquitectura que se distribui por todo o território e que não é possível classificar por tipos de edifícios, por materiais de construção, por zonas geográficas, Arquitectura tão fluente como rica de pequenos cambiantes(8).

Esta declaração de princípio contrariou, à semelhança do trabalho desenvolvido nas restantes cinco zonas do país, as expectativas do Estado Novo, de uma única arquitectura portuguesa, digna da História do país, que importava enaltecer. Nessa medida, a posição de Fernando Távora e dos seus colegas do Inquérito aproximou-se da de Ledoux, porquanto trataram por iguais as casas de lavoura do meio rural mais pobre e os solares eruditos da cidade, porque são, de facto, igualmente valiosas.

Por outro lado, como referiu Nuno Teotónio Pereira(9), que chefiou a equipa de trabalho na Estremadura, o interesse em participar no Inquérito tinha também a ver com o momento crítico de revisão dos dogmas da arquitectura moderna, na defesa de uma Arquitectura que se adaptasse melhor às condições locais, pois a finalidade era tornar o espaço identificável por toda a gente. Pretendiam organizar e regionalizar a Arquitectura e para Teotónio Pereira, Fernando Távora desempenhou um papel muito importante nesse trabalho.

Mas Távora foi mais longe, ao declarar a sua convicção de que a Arquitectura, nascida da terra e do homem, presa por mil fios aos cambiantes da realidade, lhe aparecia naquele momento ainda mais forte porque presa à sua circunstância como uma árvore às suas raízes(10). Nesse momento de descoberta e assombro, em que a Arquitectura deixara de ser a entidade intocável e sublime só ao alcance de génios semidivinos, a sua percepção da Arquitectura aproximou-o extraordinariamente de Claude-Nicolas Ledoux.

As influências do trabalho desenvolvido no Inquérito, de uma certa ruralidade, são evidentes em obras de referência como a casa de Ofir(11) ou a escola do Cedro, em Vila Nova de Gaia.

A manifestação de vida que Fernando Távora acreditava ser a Arquitectura só fazia sentido se considerada na sua plenitude. Sem fragmentações ou divisões. Se o espaço é contínuo, como resolver o problema da sua organização sem o encarar na sua totalidade?(12) A procura era pela hierarquização das condicionantes e das partes, de modo a integrá-los num todo que fosse mais do que a sua soma. Ou seja, trabalhando a uma escala nacional, considerando todo o território e integrando num todo único, as soluções parciais que satisfizessem os interesses do país. A sua proposta para a organização do espaço era a de um caminho do particular para o geral. Se a Arquitectura cria circunstância, ela não poderá colocar-se numa posição de vítima, mas deverá agir para melhoria da circunstância pré-existente, sem recear combater e transformar essa circunstância(13).

Para tal, há que conhecer melhor os espaços onde intervimos, há que determiná-los com clareza e investigá-los com a máxima profundidade. No fundo, a Arquitectura terá que reforçar o seu poder, no domínio da matéria, no modo como ordena o espaço, no modo como antecipa soluções(14), se pretende ser autónoma.

De Claude-Nicolas Ledoux, cuja arquitectura foi intitulada, depreciativamente, como “parlante”, por representar e falar dos poderes da aristocracia, derrotados na Revolução Francesa, e que, afinal, antecipou e influenciou o futuro da disciplina, até à descoberta de Fernando Távora que a Arquitectura já não era a virgem branca inacessível, mas obra feita de homens para homens.

Ledoux desenhou as partes, a partir de uma visão do todo, comum na época. Távora, propôs a organização do todo, a partir das partes. Ambos, rejeitaram formas arquitectónicas dependentes do sistema social ou da estrutura do estado e contribuíram, de modos distintos, para o projecto de autonomia da Arquitectura.

Notas

(1) Domingos Tavares. Claude-Nicolas Ledoux, formas do iluminismo. Dafne Editora, 2011, p. 50.
(2) Seguindo as teorias do padre jesuíta Marc-Antoine Laugier, que pretendeu encontrar outras leis, fixas e imutáveis para atingir a beleza na arquitectura, Boullée desenvolveu um manifesto, no qual expôs a sua “teoria dos corpos brutos” para a reconstrução de um sistema de ideias apoiado na reprodução da natureza, como base do belo que importa à Arquitectura.
Domingos Tavares. Claude-Nicolas Ledoux, formas do iluminismo. Dafne Editora, 2011, p. 56.
(3) José António Bandeirinha. Emília e o Espelho do Siza ou a Incómoda Residência da Arquitectura. Jornal dos Arquitectos, 234, 2009, p. 70.
(4) Domingos Tavares. Claude-Nicolas Ledoux, formas do iluminismo. Dafne Editora, 2011, p. 12.
(5) Domingos Tavares. Claude-Nicolas Ledoux, formas do iluminismo. Dafne Editora, 2011, p. 17.
(6) Emil Kaufmann. De Ledoux a Le Corbusier, origen y desarrollo de la arquitectura autónoma. Editorial Gustavo Gili, 1985 (1ª ed. 1982), p. 79.
(7) Anthony Vidler, Claude-Nicolas Ledoux, architecture and utopia in the era of the french revolution. Birkhauser, 2006 (ed. original, 2005), p. 6.
(8) Fernando Távora. in Arquitectura Popular em Portugal. Lisboa, Ordem dos Arquitectos, 2004 (1ª ed. 1961), vol. 1, p.5.
(9) Entrevista concedida a Carlos Guimarães, João Crisóstomo e Luís Loureiro, disponibilizada no Portal Vitruvius em 2008 e acessível em revisitavora.wordpress.com.
(10) Fernando Távora. Excerto de Memória Descritiva e Justificativa do Projecto da Escola do Cedro, em Vila Nova de Gaia, 1963, In Fernando Távora. Editorial Blau, Lisboa, 1993.
(11) No texto que acompanha esse projecto, na monografia da Editora Blau, Fernando Távora refere que esta obra resulta do diálogo magnífico e inesquecível entre todos os factores exteriores e interiores ao arquitecto, entre os quais se inclui o amor sem limites que sente por todas as manifestações de arquitectura espontânea do seu país e que já vem de longe.
(12) Fernando Távora. Da Organização do Espaço. Porto, FAUP Publicações, 1999 (1ª ed. 1962), p.50.
(13) Fernando Távora. Da Organização do Espaço. Porto, FAUP Publicações, 1999 (1ª ed. 1962), p.55.
(14) José António Bandeirinha. Emília e o Espelho do Siza ou a Incómoda Residência da Arquitectura. Jornal dos Arquitectos, 234, 2009, p. 65.