“… a memória, a memória é a coisa mais jovem…” 1

Pensando nos nossos percursos quotidianos pelos locais que habitamos chegamos à conclusão de que, de modo mais ou menos diferido, mais ou menos consciente, tendemos a fixar marcas que os pontuam e nos orientam. Constatamos, pois, que estes fragmentos estão na base das nossas memórias; estes “vestígios” de presença, recorrendo à linguagem de Walter Benjamin, ajudam a construir a imagem que temos de determinado espaço e de determinada cultura.

Se voltarmos, de tempos a tempos, a ler os textos do arquiteto Adolf Loos (1870 – 1930), seremos confrontados com uma ideia basilar: as únicas construções verdadeiramente simbólicas e monumentais são os túmulos. Ora, proponho que testemos esta ideia nos passeios quotidianos de que falava inicialmente: afinal, quão simbólica pode ser uma construção marcadamente presente no dia-a-dia de uma cidade, como um bloco de apartamentos, uma igreja… ou um mercado?

Pois bem: quem, como eu próprio, conheceu o edifício do mercado do Kinaxixe (também redigido como Kinaxixi, ou Quinaxixe), na capital angolana, Luanda, poderá testar quer a sua memória, quer o sentido desta associação entre simbolismo e edifícios do quotidiano. Efetivamente, o programa de um edifício como um mercado é dos mais simbólicos na história das civilizações humanas e, por extensão, as próprias construções que os albergam são de grande importância para compreender a evolução de determinada cultura urbana.

O mercado do Kinaxixe, projetado pelo arquiteto português Vasco Vieira da Costa nos primeiros anos da década de ’50 do século passado e demolido em 2008, foi um exemplo claro desta relevância. Situado no largo homónimo na cidade angolana, o edifício conquistou o estatuto de ícone do século XX angolano, por diversos motivos.

A localização do mercado, na charneira entre as cotas alta e baixa da cidade e ligando as áreas comerciais da antiga baixa luandense às novas áreas de expansão urbana projetadas a partir dos anos ’40, era sintomática quanto à sua importância no crescimento da cidade - destacam-se, neste contexto, os planos de Moreira da Silva e Etienne de Gröer, em 1942, de João Aguiar, em 1949, e o Plano Director da autoria de Fernão Simões de Carvalho, já no ano de 1961. Com efeito, o crescimento acelerado da Luanda de meados do século XX atestava a pujança económica da ex-colónia portuguesa, estando urbanisticamente alicerçado nos princípios de cidade do Movimento Moderno e da cidade-jardim, sua antecessora.

A composição do edifício evidenciava a mestria do arquiteto Vieira da Costa na aplicação do chamado “Moderno Tropical”, uma adaptação das lógicas de tendência corbusiana à especificidade cultural e climática dos trópicos – exemplificada com brilhantismo, também, nos edifícios da Rádio e Televisão de Angola, de Simões de Carvalho, ou do Cine Atlântico, do arquiteto António Ribeiro dos Santos, ambos felizmente ainda existentes e bem conservados. De facto, o contexto de desenvolvimento das ex-colónias portuguesas, incentivado por motivos demasiado complexos para este artigo, criou as condições para uma exploração da arquitetura moderna geralmente mais ambiciosa do que era a norma na Metrópole, como as obras dos arquitetos lusos em África demonstrariam.

A arquiteta angolana Maria João Grilo afirma que “(…) Vasco Vieira da Costa situa o projeto entre praça e edifício (…)”2; esta descrição é efetivamente adequada ao projeto do Kinaxixe: por um lado, pela disposição do edifício, que tirava partido da forte relação entre rua, espaços cobertos e pátios internos, numa airosa intercomunicação; por outro, pelo facto de o mercado do Kinaxixe se ter conseguido impor como um verdadeiro edifício cívico, como uma verdadeira “praça” - a própria proximidade semântica, na língua portuguesa, entre “mercado” e “praça” sublinha a influência deste tipo de espaço no quotidiano urbano e na escala de proximidade da maioria das cidades portuguesas, na Metrópole e nas colónias.

Para além da sua relevância arquitetónica, este edifício pontuou uma época politicamente crucial no século XX português e angolano, na qual “(…) se acentuaram as diferenças entre colonizados e colonizadores (…)”3 e que viu o impulso dado por Portugal ao desenvolvimento económico das suas colónias e das classes médias que nelas viviam tornar-se um dos motivos, ironicamente, para a “separação” que mais tarde se verificou, por entre utopias e desencantos.

A memória é, estranhamente, das entidades mais maleáveis que conhecemos. É tão pétrea que tomamos como verdadeiros “factos” ilusórios; é tão jovem e fresca que não poucas vezes se nos escapa nos momentos-chave.

A história do mercado do Kinaxixe talvez seja mais uma prova disto mesmo.

Notas:

1 Excerto de um sample de voz no tema “A memória”, do grupo português Orelha Negra.

2 Grilo, Maria João. “Vasco Vieira da Costa, Os Caminhos Sombreados do Sol” cit. in TOSTÕES, Ana (ed.). Arquitectura Moderna em África: Angola e Moçambique, 2014.

3 Figueiredo, Wilfred. Oito 48 13 Treze – A habitação colectiva como substracto da urbanização, 2008.