A presença do arquitecto Viana de Lima em Bragança marcou de forma indelével a arquitectura da cidade, não só na época em que foi realizada mas, sobretudo, na forma como a própria cidade se foi apropriando dessa arquitectura até aos dias de hoje, nuns casos confirmando e reafirmando as propostas de Viana de Lima, noutros, infelizmente, quase esquecendo o seu contributo. A ele se devem alguns dos mais notáveis exemplos de Arquitectura Moderna que se construíram no Nordeste Transmontano1 e que é, nas palavras de Domingos Tavares, transportadora de uma cultura supra-arquitectónica, que tem a ver com o sentimento de ligação à terra e à tradição das coisas comuns, aos valores da paisagem e do homem que se funde com a paisagem2.

A ligação da arquitectura à paisagem, à própria especificidade regional e à sua memória serve de complemento à racionalidade com que convictamente estes edifícios foram sendo desenhados. Serve também, por contraditório que possa parecer para com o radicalismo proposto pelo Movimento Moderno, como forma de garantir uma certa continuidade para com a cidade e o seu passado e futuro. Afirma-se como nova, moderna, civilizada e urbana, mas há em si uma serenidade, equilíbrio e diálogo com a realidade envolvente, que a amarram ao lugar e a tornam, simultaneamente, singular.

Embora essa característica possa ser mais perceptível nalguns edifícios do que noutros, como é o caso das escolas primárias do Toural e das Beatas, profundamente adulteradas por intervenções recentes no seu interior, ou até no bairro de habitações em banda no Toural, cujas referências ao Inquérito à Arquitectura Popular Portuguesa são evidentes, o edifício da Torralta, no encontro da Avenida Dr. Francisco Sá Carneiro com a Praça Professor Cavaleiro Ferreira, cujo projecto de 1963 incluía uma agência bancária, um cineteatro, um hotel e um café-restaurante, representa, na nossa opinião, a síntese de uma evolução no pensamento moderno de Viana de Lima.

Se, por um lado, interessava afirmar a presença do edifício, na sua modernidade e urbanidade, na grande praça central de meados do século XX, desenhada por Januário Godinho no Plano de Urbanização da Cidade de Bragança de 1946, o jogo de volumes que se vai diluindo na malha urbana anónima das traseiras, revela a preocupação de Viana de Lima em estabelecer relações com a envolvente. O edifício da Torralta será, de resto, o único na praça que respeita as intenções do Plano de Januário Godinho, ao evitar claramente uma linguagem neotradicional, falsamente revivalista das formas do passado, à semelhança do que então era defendido pelo Estado Novo nas obras públicas e veio a ser construído nos restantes edifícios (Palácio da Justiça, Edifício das Corporações e da Previdência e Banco Nacional Ultramarino).

Num espaço público de representação do poder do Estado Novo, onde se reuniam os edifícios que melhor simbolizam a presença do Estado numa cidade média como Bragança, implantado numa zona, então, de transição e expansão da cidade para norte/nordeste, o edifício da Torralta inscreve-se já no Plano de Urbanização que Viana de Lima elaborou em 1960 para Bragança. Apesar da complexidade da encomenda e da diferença de cotas no local onde se implantou, a aparente simplicidade na distribuição do programa e na articulação do conjunto, estabelece diálogo quer com as formas revivalistas e institucionais da Praça Professor Cavaleiro Ferreira, quer com o frenesim do movimento automóvel que se antecipava para a transformada Avenida Dr. Francisco Sá Carneiro dos anos sessenta do século passado, quer sobretudo, com o casario das ruas secundárias das traseiras e do interior do quarteirão.

Volvidos mais de cinquenta anos desde a sua construção, o edifício da Torralta permanece como testemunho privilegiado de um modo de fazer cidade e convoca-nos para a necessária reflexão do desenho do território periférico e interior. No entanto, tendo em consideração o estado de aparente abandono a que chegou; algumas alterações e adaptações recentes, que privilegiaram o cumprimento dos normativos regulamentares em detrimento da integridade arquitectónica do edifício; o silêncio das autoridades locais, indiferentes ou desconhecedoras do valor patrimonial desta Arquitectura, que não entendem por não se encaixar na sua visão provinciana do que é património; urge encontrar formas de salvaguardá-la e de convocar a sociedade civil para esse desafio.

Como refere Carlos Machado, mais do que a forma em si mesma, o que torna esta arquitectura singular, são as relações que estabelece com tudo que a rodeia3. Se o reflexo deste movimento de ideias se encontra já esbatido, cabe-nos a nós, na actualidade, encontrar forma de o reavivar e projectar no futuro, não só pelo seu valor intrínseco e pelo conjunto de significados para a construção da cidade de Bragança mas também por se tratar de um património arquitectónico tão ou mais valioso do que o de qualquer outra época histórica, por ser representativo da glorificação do espírito da época da máquina, porque nos foi transmitido na cidade e pela cidade, como um bem que herdámos e deveremos saber honrar mas que, ao longo das últimas décadas, tem sofrido inúmeras transformações que o tornam, em muitos casos, irreconhecível.

Notas

1A par da extraordinária experiência da Arquitectura das barragens em terras de Miranda do Douro.

2Domingos Tavares, Modernos do Porto, in Moderno Escondido (1997), p. 16.

3Carlos Machado, Alfredo Viana de Lima em Bragança, in Monumentos nº 32 (2011), p. 132.