Na dissertação que elaborou para o Concurso de Provas Públicas para provimento de um lugar de Professor do 1º Grupo da Escola Superior de Belas Artes do Porto, intitulada Da Função Social do Arquitecto: para uma teoria da responsabilidade numa época de encruzilhada, e que teve a primeira edição em 1962, Octávio Lixa Filgueiras elegeu como tema de conversa a nossa responsabilidade, enquanto arquitectos, perante um mundo que precisamos conhecer para compreender e, portanto, poder brindar com os frutos duma das actividades mais construtivas que se conhecem. Para muitos, o arquitecto é o que faz; para uns tantos, o arquitecto também pensa; para os que sabem, o arquitecto, para realizar-se tem que saber fazer e, ao mesmo tempo, conhecer as coisas, e os homens, e o mundo, e a vida, e de tudo saber tirar uma lição que lhe permita erguer, no dealbar, um hino de esperança ao novo dia1.

Ora, se as questões sociais e de responsabilidade social se justificavam nos anos sessenta, sobretudo tendo em consideração que Octávio Lixa Filgueiras tinha acabado de participar no Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal, como responsável pela equipa que fez o trabalho em Trás-os-Montes e tendo, portanto, presente esse confronto da Arquitectura com o tempo, com a memória, do presente com a tradição, em Portugal. Mas tinha também consciência da necessidade de conhecimento real de um mundo interiorizado, da necessidade de garantir continuidade na realidade arquitectónica do país e, sobretudo, da necessidade de estabelecer uma ética estrutural, interna à própria prática profissional. Da parte que nos cabe a nós, arquitectos, na efectivação do que será uma herança para as futuras gerações2.

A própria pedagogia da Arquitectura, ao contrário da ideia imposta pela Reforma de 1957 da Escola de Belas Artes do Porto, pressupunha, antes de mais, um entendimento inclusivista da condição material, social e temporal das coisas do mundo e um desígnio ético que é devido à capacidade transformadora da própria disciplina3.

Octávio Lixa Filgueiras estava seguro disso mesmo, ao afirmar que o que distingue a atitude superior, em Arquitectura e não só, é o critério de ética que a informa. É isso, precisamente, que a torna ímpar4. Se o que verdadeiramente importa é que a Arquitectura possa ser vivida por todos e não apenas por alguns, deveremos saber aproveitar o facto de, na actualidade, as encomendas profissionais já não estarem limitadas na origem, nem ao novo-rico, nem ao burguês capitalista, e muito menos ao rei ou príncipe. De terem origem no cidadão anónimo que habita a cidade, a vila ou a aldeia. É para ele que nos devemos dirigir, contribuindo com alguma coisa que aguente o embate com a vida, vencendo-a sem a destruir, enriquecendo-a, dignificando-a. Ou, como dizia Fernando Távora, criando nova circunstância a partir da existente.

Já não se trata de sair para a rua, ou de reivindicar o direito à cidade e ao lugar, como travões à estratificação classista e à especulação imobiliária, mas de assumir o compromisso com todo o património edificado e com os seus valores históricos e culturais associados. E de estabelecer um diálogo criativo com o contexto tal como encontrado e não a partir de soluções universais ou invenções subjectivas5. Cada caso é um caso e merece a dignidade de ser tratado como tal. Ou seja, assumir um compromisso com a Arquitectura, encarando-a como actividade política, que transforma a cidade, desejavelmente, para melhor.

Ora, dentro da mediania que nivela a prática profissional do quotidiano actual, deixamos vezes de mais que a subjectividade do cliente se sobreponha àquilo que sabemos ser o melhor para um determinado sítio, para uma determinada encomenda. E fazemo-lo de forma acrítica e envergonhada, porque consciente de que essa não é a atitude expectável de um agente empenhado em transformar a sociedade para melhor. Os anos recentes de crise, associados ao aumento exponencial de licenciados em arquitectura e às indefinições dos actos próprios da profissão, permanentemente sob ataque cerrado dos engenheiros civis, que insistem em subscrever e elaborar projectos de arquitectura, como se tal fosse possível, agudizam este problema e, ao contrário da geração de setenta que, confrontada com as crises da época, se juntou às brigadas do Serviço Ambulatório de Apoio Local, vivemos num permanente estado melancólico, porque conscientes de não ser bem este o desígnio da Arquitectura.

Se a consideração de que todos, independentemente da sua origem e condição social, eram e são merecedores dos critérios do belo e da Arquitectura, pelo menos a partir desse gesto verdadeiramente revolucionário de Ledoux há mais de duzentos anos, de aproximação da Arquitectura “aos de baixo”, deveremos, na actualidade, promover um movimento pedagógico inverso, de aproximação de uma cultura arquitectónica nivelada por baixo, à ética que deve informar e conduzir a disciplina. Uma vez que a fruição plena dos espaços projectados e construídos não passa de utopia, teremos a obrigação de, pela perseverança do desenho e do tal compromisso social, fazer com que o uso da Arquitectura não seja nem desatento, nem arbitrário. Para que, aos poucos, não sejamos, porventura, mais pedreiros do que outra coisa, até porque, como dizia Adolf Loos, já não podemos dizer que aprendemos Latim...

Notas

1 Octávio Lixa Filgueiras, Da Função Social do Arquitecto: para uma teoria da responsabilidade numa época de encruzilhada, Porto, 1962, p. 16.
2 Octávio Lixa Filgueiras, Da Função Social do Arquitecto: para uma teoria da responsabilidade numa época de encruzilhada, Porto, 1962, p. 18.
3 José António Bandeirinha, Arquitectura - A Praça da Autonomia, Pedagogia, Epistemologia, Pensamento Crítico, Porto, 2017, p. 11.
4 Octávio Lixa Filgueiras, Da Função Social do Arquitecto: para uma teoria da responsabilidade numa época de encruzilhada, Porto, 1962, p. 23.
5 Alexandre Alves Costa, in José António Bandeirinha, O Processo SAAL e a Arquitectura no 25 de Abril de 1974, Porto, 2007, p. 11.