Este texto tem como objectivo apresentar um comentário alternativo à obra Allégorie de la Géométrie do pintor barroco francês Laurent de La Hyre (1606 – 1656). Esta pintura faz parte da série Les 7 arts libéraux, uma das mais relevantes contribuições de Laurent de La Hyre. O artista pintou este grupo de obras entre 1649 e 1650 para decorar a residência em Paris de Gédéon Tallemant, um conselheiro do monarca Luís XIV. No início de 2014, a obra estava avaliada entre 800.000 e 1.200.000 dólares.1 A pintura foi recentemente adquirida por Fine Arts Museums of San Francisco.2

Podemos resumir algumas propostas de interpretação da seguinte forma:

Allegory of Geometry displays the refined classicism, rich color, and elegant forms characteristic of La Hyre’s mature work. Geometry is personified as a young woman holding a compass and right angle in one hand and a sheet inscribed with Euclidean mathematical proofs in the other. Surrounding her are examples of the practical applications of the science, including a perspectival landscape painting on an easel, a globe that refers to mapmaking, and an ancient Egyptian pyramid.3

Of all the works in the series, Allegory of Geometry perhaps held the greatest personal significance for the artist, since knowledge of the discipline, in the form of perspective, was crucial for the practice of painting at the time. In the late 1630s, La Hyre studied with the mathematician Girard Desargues (1591–1661), who is considered one of the founders of projective geometry.4

In the center of the composition sits the embodiment of geometry, leaning on a block of marble. In her right hand is a sheet of paper with a diagram of the golden section and three Euclidian proofs, which she holds up for the viewer to see. In her left hand is a compass and a right angle, tools of a mathematician and geometer. Surrounding her are references to the practical applications of geometry, beginning at the left with a painting set on an easel, the painter’s palette and brushes affixed below. The globe next to it stands for the earth, but also is a product of geometry, as geometry underpins the process of mapmaking. The snake above is an attribute for the goddess Ceres, an older representation of the earth.5

Na nossa opinião, estas interpretações têm componentes certeiras, mas podem ser muitíssimo enriquecidas. Comecemos pela mão direita da jovem que personifica a geometria. O detalhe relativo às construções geométricas por si seguradas é mostrado em (a).

No canto superior esquerdo vemos a famosa demonstração euclidiana do Teorema de Pitágoras (Livro I, Prop. XLVII) que enuncia que a soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa. Trata-se de um celebérrimo e bonito argumento para o facto das áreas vermelhas e verdes em (b) serem iguais.

A questão central do quadro relaciona-se com as restantes duas construções. De alguma forma, têm de desempenhar um papel no contexto do quadro. Elementos fundamentais das aplicações práticas da geometria são o planeta Terra, com a cobra referenciando a Deusa Mãe Terra Ceres, e a simbiose prática/teoria invocando os egípcios e os gregos (pais da geometria). Gregos e egípcios são apresentados em conjunção e não em oposição, como é dito por alguns; um sintoma claro para isso está no facto da esfinge ter cabeça grega (a esfinge é elemento comum à cultura grega e egípcia). Prática e teoria não se opõem; integram-se. Posto isto, olhemos para (c).

É um resultado geométrico facilmente demonstrável, a relação de ângulos exposta na figura. A questão interessante é «O que é que este resultado tem a ver com a ambiência do quadro?». Isso é facilmente visível acrescentando uma possível utilidade do resultado (d).

A relação em causa dá uma justificação directa para o facto da altura do Polo (altura da Estrela Polar no hemisfério norte, à data deste texto) ser exactamente a latitude do lugar. Este facto singelo constituía, à época, pura e simplesmente a diferença entre a vida e a morte nas viagens dos navegadores. Poucos esquemas geométricos tiveram tanta importância na vida das pessoas.

A mais misteriosa construção nas mãos da jovem é a do canto superior direito. O esquema não tem nada a ver com o «mediático» rácio dourado, ao contrário do que é dito. É comum os especialistas «quererem ver» este rácio onde ele não existe. O que está diante dos nossos olhos é outra coisa diferente: Dada uma unidade, temos um rácio de 4 para 3. A figura que o acompanha, faz lembrar a Proposição IX do Livro II de Euclides. No entanto, esse resultado não se relaciona com este rácio. Consideremos o argumento em (e).

Neste esquema, G é o ponto médio de [FC] e F é o ponto médio de [AB]. A altura do triângulo é arbitrária. É possível demonstrar-se com geometria euclidiana simples que (DE) ̅:(FG) ̅=4:3, a razão que acompanha o esquema. E esse facto não depende da altura. Isto quer dizer que se os egípcios quisessem fazer um túnel desde o chão a passar por uma câmara no interior da pirâmide, este facto proporcionaria a localização da saída do outro lado, qualquer que fosse a pirâmide em causa.

Observe-se que tanto o Teorema de Pitágoras, como a relação latitude/altura do polo, bem como a saída do túnel são resultados gerais, traduzindo o incrível poder da geometria no que diz respeito a aplicações práticas - tema fundamental desta pintura. O Teorema de Pitágoras é válido para todos os triângulos rectângulos; a relação latitude/altura do polo é válida para qualquer lugar da Terra, a proporção de 4 para 3 relativa à saída do túnel é válida para qualquer pirâmide. Foi isto que Laurent de La Hyre colocou no seu quadro; o poder do carácter geral e abstracto da geometria.

O relevo do túmulo poderá expressar simbolicamente a ideia do «enterro» das oferendas e cerimoniais. Com a geometria, a humanidade passou a ter uma forma mais eficaz de lidar com muitos dos factos do mundo.

Uma última nota interessantíssima prende-se que o facto de Laurent de La Hyre ter estudado com o geómetra Girard Desargues. Laurent de La Hyre conhecia os excitantes estudos sobre perspectiva, razoavelmente recentes à época. Em (f), ilustra-se a ideia fundamental da perspectiva.

Os objectos são projectados geometricamente na tela do quadro. Apenas o ponto de fuga, na paralela ao chão, passando pelos olhos do observador, não corresponde a nenhum lugar concreto (ponto infinito). Duas linhas paralelas encontram-se nesse ponto na tela do quadro.

A perspectiva surge neste contexto como uma auto-referência. A geometria aplica-se ao próprio objecto artístico que ilustra a sua enorme aplicabilidade. Quase tudo é alvo da geometria, incluindo o próprio quadro. Há mesmo uma pintura dentro da pintura, o que constitui uma nota de humor e um exercício interessante. Esse «quadro interno» contém um local semelhante ao representado na obra, com uma única diferença: a presença do Homem e das suas construções não se faz sentir. É claro que, com essa ausência, a pintura dentro da pintura é muito mais pobre. Esse facto está carregado de significado, apontando para a importância da integração entre a geometria e as temáticas humanas concretas que a motivam. O quadro e o local deixam de ser interessantes sem a nossa presença, assim como a geometria é totalmente insossa sem a sua relação com a realidade e engenho humano.

Em relação à obra no seu todo, há linhas que sabemos serem paralelas. Não pensando nas linhas paralelas do quadro que se encontra na obra e utilizando as linhas da tela desse quadro para determinar o ponto de fuga pensado por Laurent de La Hyre, obtemos o resultado em (g).

É fantástico, mas tudo se passa na cabeça da esfinge! Símbolo da integração greco/egípcia e, mais geralmente, da integração saber prático/saber geométrico. Todo o quadro vive deste tema, ilustrando de forma sofisticadíssima a relação do carácter abstracto e puro da geometria com as aplicações práticas do homem no mundo.

Referências
1(http://www.sothebys.com/en/auctions/ecatalogue/lot.114.html/2014/the-courts-of-europe-n09107)
2(https://art.famsf.org/laurent-de-la-hyre/allegory-geometry-201413)
3Fine Arts Museums of San Francisco
4Sotheby’s (http://www.sothebys.com/en/inside/overview.html)
5Sotheby’s (http://www.sothebys.com/en/inside/overview.html)