Wassily Kandinsky dizia que tudo começa no ponto. Ele simplificou ou esqueceu, que o ponto é uma interseção de retas.

A afirmação de Kandinsky enfatiza idéias de começo, de origem, de causalidade. Quando se pensa em começo, em início, busca-se origens, busca-se causas do existente. Descobrir o início é a grande pergunta da ciência, tanto quanto açambarca toda idéia de criador e criatura, remetendo a um absoluto, a uma causa explicativa de tudo.

Onde começa o eu? Quando inicia o mundo? Qual a causa das grandes paixões e dos encontros não realizados, não continuados? Qual o instante abismal que colapsa perspectivas, o ponto responsável pela mudança, pela continuidade contingencial criadora de interseção? Frequentemente o entendimento destas questões é expresso através de variáveis deterministas, que procuram abranger e especificar o que é considerado causa explicativa.

Nada começa, nada finda, tudo continua e esta é a reversibilidade inexorável que cria os processos. São sequências de variáveis, interseções infinitas ocasionadas pelos processos, tanto quanto deles resultantes, que estabelecem pontos, variáveis, sistemas que insinuam começo e fim. Não há começo, não há origem, não há fim, não existe causalidade. O que existe são processos relacionais, movimentos convergentes e divergentes, criadores de posicionamentos, lacunas e abismos. Diante deles somos referenciados em contingências e estruturas que determinam nosso estar no mundo. Estas posições podem significar começos à medida que suas variáveis configuradoras são descontinuadas, fragmentadas. Buscar causas é negar a dialética dos processos, é transformar o processo da vivência humana em regra linear.

Na esfera psicológica, querer saber quando começa o medo, quando começa a dificuldade de relacionamento, por exemplo, e encontrar “traumas” como resposta, ou explicar pela situação de pobreza, de riqueza ou outras situações onde a rejeição era constante, são explicações que não globalizam o processo humano, são maneiras de amesquinhá-lo através do aprisionamento à referenciais históricos, à referenciais socio-econômicos. Medo é omissão diante do que ocorre, é a não resposta, a não participação, geralmente resultante de ter sido posicionado, arrebentado, despersonalizado em outros processos, em outras variáveis criadoras de atitudes, de comportamentos alienados.

Tudo começa onde acaba exatamente porque são insinuados parâmetros configuradores de realidades das quais se está diante. É a interseção de situações que impede a pontualização, tanto quanto permite a explicação globalizante. Imaginar começos, pontos de origem e causas é aristotélico, causalista, também cartesiano. Ato e potência, res extensa e res cogitans são abordagens lineares baseadas em tipificações, em classes, baseadas na divisão denso e sutil estabelecedora de dualismos e complexidade como a clássica idéia de matéria e espírito, de consciência como pré-existência do conhecimento, sede da alma, mais tarde sinonimizada como sujeito, favorecendo abordagens de viés introspectivo.

Penso que sujeito e objeto são aspectos de uma polaridade, não começam, nem terminam, não estão dentro, nem fora, são apenas polos de um eixo. Não há o mundo do sujeito (classicamente configurado como subjetivo pela filosofia e psicologias causalistas, principalmente as de fundamentação psicanalista), nem o mundo do objeto, da mundaneidade. Há um ser humano que percebe e isto é a dinâmica relacional do estar no mundo. Conceituações e denominações classificatórias de sujeito e objeto criam estagnações, criam divisões na maneira de enfocar o homem. É através da percepção que se estruturam o sujeito e o objeto. O ser humano não é sujeito nem objeto, ele é ser humano, que a depender da própria percepção, se configura em sujeito ou objeto, ocorrendo o mesmo em relação à percepção do outro - o outro ao me perceber configura a mim como sujeito ou como objeto.

Tudo começa no ponto, isto é, na interseção das retas que o configuram. Sabemos que a reta é uma infinita sucessão de pontos, consequentemente de interseções. Kandinsky sempre desenhou o relacional, apesar de achar que tudo começava em um ponto. Configurando a trajetória do ponto, ele sequenciava suas interseções.