Marcamos quatro professoras do Curso de Capacitação de Agentes Comunitários de Osório, um encontro no Mercado Público de Porto Alegre. Para afinar impressões, objetivos, metas, e o encerramento do curso que será em setembro. Chegamos todas no horário combinado. Pedimos café, o frio, a chuva e o vento intenso lá fora nos fazem tiritar, gosto da palidez que temos, das roupas do frio, tudo é novidade pra mim depois de tantos anos longe do sul. E moramos todas em cidades perto de Porto Alegre: Eldorado do Sul, São Leopoldo, Novo Hamburgo e Osório, todas temos de pegar condução para voltar para casa e temos de ser objetivas e rápidas. Estamos entre os 35 e 55 anos, falamos das tinturas do cabelo e da única coisa que realmente nos incomoda de verdade no envelhecimento: a perda gradual da visão. O resto tudo parece ser palatável, suportável. “A questão é que este é justamente o momento em que começamos a ver coisas que não precisam de óculos”, alguém diz; “infelizmente”, alguém rebate.

Começamos revisando o calendário, os encontros que faltam e o cronograma que teve de ser alterado, fazemos correções, apontamentos. Então ela diz com uma voz que parece não ser a dela, que vem do fundo dos tempos, de um tempo que nada tem a ver com o que acontece na Banca 40 ou com nenhuma de nós: “- O Zé tá me chifrando.”

Depositamos todas as canetas, celulares, folhas e óculos na mesa. “Putz”, e não conseguimos articular muito mais além disto.

“Eu acho que estou ficando louca”, ela diz, com um olhar entre cansado e meio ausente. “Hoje na hora do almoço eu disse na mesa onde estavam meus dois enteados, a empregada e meu filho: O Zé ta me chifrando com a Marilda. Todo mundo ficou com esta cara que vocês estão agora, e comecei a rir descontroladamente e lembrei aquele filme Montenegro, quando a mãe de família, na cena final do filme, serve os pratos de todos e envenena toda a família. Nestas horas todo mundo entende a gente. Você pode rir, chorar, esbravejar, berrar, que todo mundo entende e ninguém diz nada, porque não há que possa ser dito.”

Uma de nós diz, “Ai amiga! Que dor”.

“Que ódio”, diz a outra.

E a outra lembra que hoje é o Dia do Amigo e pedimos quatro cálices de vinho branco para brindar e comemorar. Ela diz, “Eu sou a galhada de ouro do meu bairro agora, ando caminhando pelas ruas e todo o bairro sabe que a galhada esta pesada. Eu tenho vontade de dizer pra elas, aquelas mulheres de vida pulcra que me olham com piedade, que-que-é, nunca viu? Nunca viu uma corna se arrastando no frio? E berrar fuckkkkkyou e botar a língua pra fora e mandar todo mundo se ralar. Mas não faço nada disto, continuo séria e firme e cumprimento a todos, digna e meio indiferente, cimentando o fel e a dor pra quando puder reagir. Reage, Batman, reage, eu me digo”, ela conta rindo e chorando.

Pergunto como ela soube. Se tem certeza... Ela diz que é meio batata: quando duas frases são repetidas, em três dias, mais de duas vezes, você está sendo chifrada. Uma delas é “Eu não quero magoar você” e a outra é “Não é nada com você, o problema é comigo”, e digo, tem mais duas: “Você é uma mulher muito especial” e “Eu não mereço você”. Todas concordam. Na verdade, ele quer magoar você sim, aliás, ele já está magoando você, aliás, ele nem está preocupado com isto. Assim é a vida. Mas isto não podia ter acontecido comigo! Podia sim, sempre acontece, e a única coisa que você não consegue atinar neste momento é que também podia ter acontecido com ele.

Ela explica que o problema é que daí a vida se transforma num verdadeiro inferno. Ele se atrasa cinco minutos pra chegar em casa e ela tem certeza que ele tá no meio de uma metidinha com a Marilda num motel. E quando ele chega em casa ela nem se sente aliviada. Ele diz que vai no mecânico e ela só pensa que ele está com a Marilda, tudo o que ele pode estar fazendo é isto e nada mais, metendo na Marilda.

Você adota um olhar estoico, ela diz, sorri com serenidade, indiferente, fingindo que nada está acontecendo, ele passa por você e faz carinho no seu rosto, beija a sua testa (por entre os galhos) e toda a sua existência se resume a isto e nada mais: você está sendo chifrada pelo seu marido com uma mulher chamada Marilda. A mesma que manda mensagens pelo Whats durante o jogo de futebol de domingo, que ele vê comendo o bolo de chocolate que você fez e diz que está espetacular.

Começamos uma segunda rodada de vinho branco. Ela diz que ele tem o pau torto, meio pra baixo, pra direita, sabemos que o troço vai descambar pra escrotice, tudo completamente justificado, porque hoje podemos fingir que ela não ama o Zé e que não está moída por dentro. “Suspende o vinho”, eu digo, porque tem coisas que a gente não pode contar nem pra gente mesma nestas horas, se pretendemos continuar casadas. Alguém diz que ela tem que se fortalecer e reagir, que tem as crianças, que vai passar, que o que não nos mata, nos fortalece e que isto não é privilegio dela, que é tão comum, que ele não merece todo este sofrimento, bla bla bla.

Pergunto como ela consegue se acalmar, o que ela faz pra sair deste pesadelo e continuar. Ela explica que sente a tal garra na boca do estômago, permanentemente, a angústia grampeada e sem trégua. Que não pensa na Marilda, que olha as fotos da Marilda no Facebook e não sente nada, que já passou da idade de sofrer por isto, mas que o que dói é sempre aquela pergunta que não vai ter resposta, que é por que, afinal, que o Zé deixou de gostar dela? Começo a soluçar, e todas me ensinam técnicas para parar o soluço. Tomamos água e ela diz que só tem uma coisa que a acalma e que é quando o grampo sede e ela consegue respirar de novo. Que todo o tempo sente que levou um caldo no mar e que está ali, naquele redemoinho e que não para de rolar na areia da praia nunca mais, e que se afoga e engole muita água tentando encontrar a superfície. Mas tem este momento em que ela consegue voltar a respirar, como se enchesse os pulmões de ar e voltasse à vida. Que é quando ela imagina que corta, com a faca de cerâmica amarela, em cortes profundos e largos, os quatro pneus do carro dele, e do jeito que ela rasga os estofamentos e enche-os de coco, do coco dos cavalos que pastam perto da escola do filho, e de como vai quebrar todos os vidros e estraçalhar aquele carro, que nem vai ter como consertar ou vender depois. Que já tinha pensado em sequestrar os netos do Zé ou mesmo atropelá-lo, até compreender que nada nesta vida afetaria o Zé como ter o carro destruído e que agora se embala nestes pensamentos e pesquisa no Google técnicas de desmanche para tornar o procedimento irrepreensível. Olhamos para a nossa amiga que fala mansa e pausadamente, como uma assassina que descreve com prazer como vai esquartejar alguém e enterrar as partes.

“- Você é boba”, eu digo a ela, enquanto ajudo-a a vestir a gabardine.

Começam a fechar os portões do Mercado, estamos todas zonzas do vinho e furiosas com o Zé, ela resvala e pede desculpas pelo tropeço, ainda não se acostumou com o peso da galhada. Rimos, de raiva, de fúria, de tristeza também.

Corro pra pegar o Catamarã. Penso nela e sei que ela vai chegar em casa e fazer a sopa dos aspargos que acabou de levar embrulhados em papel pardo pra casa, e que depois vai chamar o Zé para jantar. Mas antes vai afiar a faca amarela para cortar melhor os talos dos aspargos. Ou para começar a executar o crime capaz de acalmar suas ânsias, estas que a transformaram numa mulher que ela recém começa a conhecer.