A primeira vez que ouvi “guerreiro acadêmico” foi um estranhamento seguido de um largo sorriso do tipo “eureka”! É incrível como os signos linguísticos e suas imagens se processam em nossa mente. Para mim, a palavra guerreiro tem aquela imagem do hoplita grego ou mesmo aquela imagem do cavaleiro medieval das cruzadas. Já a palavra acadêmico remete ao homem branco de óculos, olhar intelectual trajando uma indumentária formal e pasta de couro na mão. Porém, ao ouvir a formulação “guerreiro acadêmico” sobre um indígena, tais signos precisavam ser ressignificados com novas imagens na minha mente e assim ficou: um indígena com pinturas corporais e que tem, em uma mão, um arco e, na outra, um canudo metamorfoseado em flecha.

Muitas foram as coisas que eu esperava aprender e viver nos Primeiros Jogos Mundiais dos Povos Indígenas mas uma, sem dúvida, foi a mais surpreendente e aconteceu por causa dos Jogos, mas fora deles: quando o mundo acadêmico e o indígena se fundiram diante dos meus olhos ao presenciar uma defesa de Trabalho de Conclusão de Curso de um indígena sobre a sua cultura e na sua própria aldeia. Talvez esse tenha sido um dos grandes momentos vividos por mim, justamente por tornar real a imagem “guerreiro acadêmico”, fundindo os dois mundos que eu vivia naquele momento.

O último grupo de voluntários em treinamento pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) foi o dito “Grupo dos Forasteiros”, composto de voluntários de várias partes do Brasil e também de outros países. Foi em uma das atividades desenvolvidas no treinamento que tive contato com indígenas, também voluntários, pela primeira vez. Foi nesse momento que toda aquela visão distorcida e retrógrada, quiçá romântica, do “índio”, cunhada pelos livros e pelas aulas de história do século passado, foi caindo por terra. Indígenas conectados nas redes sociais, vestidos com marcas, graduandos e graduandas de diversos cursos: História, Geografia, Veterinária, Música, Jornalismo, entre outros. E isso foi mágico! Foi um alívio ver que a distância entre os dois mundos estava finalmente diminuindo.

Entre os voluntários indígenas presentes no “Grupo dos Forasteiros”, o maior número era de representantes do povo Xerente, um dos povos indígenas do estado do Tocantins, habitantes de Tocantínia, cidade a aproximadamente 70 km ao norte de Palmas e às margens do Rio Tocantins. O povo Xerente é conhecido pelo seu artesanato com o capim, especialmente o capim-dourado, um dos símbolos do artesanato do estado do Tocantins e um dos mais valorizados nos outros estados brasileiros. Essa foi a primeira aldeia que visitei, graças a um convite irrecusável.

Fomos convidados por Manoel Xerente a assistir, em pleno domingo – sim, pasmem - a defesa de Trabalho de Conclusão de Curso Armando Sõpre Xerente, dentro da aldeia Salto Kripre. Normalmente, defesas assim no mundo acadêmico são cheias de protocolos e não foi diferente. Entretanto, o mais interessante foi, mais uma vez, a fusão dos dois mundos dada pelo protocolo que parte contemplava o mundo dos brancos e parte do mundo indígena, sempre priorizando e valorizando a parte indígena.

Começamos por uma mini caminhada em direção de uma estrutura de alvenaria, de frente para o pátio que lembrava uma sala de aula aberta. Guiados pelos anciãos e pelo formando, todos seguiram atrás em direção ao local da defesa, onde o Cacique da aldeia nos recepcionava na língua Akwen pelo microfone. Bebês, crianças, meninos, meninas, jovens, adultos, anciãos. Todos se assentam para assistir aquele momento prestigioso, tanto por formar mais um professor indígena quanto por reviver, pelo olhar do pesquisador, aquilo que é parte do seu dia-a-dia.

Todo o evento foi bilíngue, sendo que primeiro era falado em Akwen e depois em Português. A banca não era apenas composta pelos arguidores do trabalho, dois professores, estando um deles ornado com a tradicional pintura Xerente, mas por três anciãos, também caracterizados com suas pinturas, cocares e cajados. Ao término da exposição de Armando, os anciãos iniciaram os discursos em sua língua materna. Depois, para mais uma surpresa, por parte dos professores, nada de críticas ácidas sobre notas de rodapé obscuras ou mesmo arrogância em comentários do trabalho que deveria ter sido feito, mas sim discursos sobre o processo pelo qual o aluno passou e seu desenvolvimento. Foi ressaltada a trajetória e as dificuldades pelas quais Armando passou ao deixar a esposa e seus filhos, um deles ainda bebê, para encarar a sua batalha acadêmica em Goiás. Não tinha quem não tivesse os olhos marejados ao ouvir dos professores, que quem mais tinha aprendido foram eles.

Acabado o protocolo das falas da mesa e da orientadora, Armando nos faz derramar mais algumas lágrimas ao chamar a esposa e filhos para um agradecimento público e, quebrando o protocolo, pede ao Cacique, seu irmão, que chame uma voluntária para compartilhar com os outros o motivo de tanto choro. Mariel, em muitas lágrimas, fala desse momento único que mostrava como um trabalho acadêmico faz todo sentido quando é feito para a comunidade. Um princípio tão elementar da pesquisa acadêmica mas que na nossa sociedade branca é tão difuso.

A defesa de Armando não foi a primeira na aldeia “Salto Kripre” e nem a primeira do Brasil e o que mais me espantou era que quase ninguém fora da região sabe que: 1) existem cursos de Licenciatura Intercultural – formação superior de professores indígenas; 2) é possível defender pesquisar acadêmicas dentro da aldeia; 3) os indígenas são acadêmicos sim!

O mais genial de tudo isso é o fato da academia sair das paredes da cidade e se integrar à aldeia, o que é totalmente coerente dentro do contexto de lutas da educação indígena em todos os âmbitos e, principalmente, no ensino superior. Dessa maneira, diversas esferas são desengessadas. A hostilidade do ambiente acadêmico se dilui ao ser transportado para outro meio. Os guerreiros acadêmicos se empoderam de suas próprias culturas e mostram para a comunidade, mas sobretudo aos jovens, que há, no mundo dos brancos, ferramentas que podem ser usadas à favor deles próprios. Os professores também têm seus papéis transformados, pois, acredito que eles passam a enxergar não só o que há de acadêmico propriamente no processo pelo qual o aluno passa e seu produto final, mas enxergam o impacto do trabalho na comunidade, a transformação que o aluno tem que passar e refletir sobre o seu papel de facilitador dentro de tudo isso.

Passados os discursos, os abraços de felicitações e as fotos, a família de Armando convidou-nos todos para o almoço, cujo prato principal foi o chambari, prato típico do Tocantins, e confraternizamos ao pé das árvores que nos protegiam do imenso calor tocantinense.

E rememorando tudo aquilo, eu reflito hoje sobre o que temos feito pelos povos indígenas em diversos âmbitos. Sendo eu acadêmica, sobretudo no que diz respeito ao ensino superior, o que realmente vivemos é uma batalha, cuja emblemática não poderia ser melhor formulada do que através dos seus guerreiros acadêmicos.

Logo ali me passou um flash da minha batalha na universidade e me questionei sobre o quanto eu tenho ainda a contribuir para a minha sociedade com a minha pesquisa. Por um momento sonhei sobre como seria defender meu doutorado na Grécia! Mas eu não sou daquela comunidade, não falo a língua deles e nem tenho ninguém daquele povo para perpetuar os conhecimentos que gerarei. Mas isso já é outra batalha para outros guerreiros...