“... é fácil confessar que muitíssimas coisas há na terra da Utopia que gostaria de ver implantadas nas nossas cidades, em toda a verdade e não apenas em expectativa”
Thomas Morus

Um mundo de abundância, fraternidade, abertura, multiculturalismo, valores humanos, justiça… O sonho e o desejo vertidos em palavras, obras, Arte, pensamento, ilusão, devaneio. Não lugares (u-topias), lugares felizes (eu-topias)…

Desde as religiões ao pensamento biológico, económico e ecológico, todas as áreas do saber apontam as suas utopias (a perfeição que não tem lugar), contrapondo-as às distopias, antítese ou negativo do anterior paradigma (que Gregg Webber e John Stuart Mill cunharam em 1868 num discurso ao Parlamento Britânico). Entre ambas, a realidade evolui, transforma-se temporaliza-se: é o tempo e o espaço da História.

Com Thomas Morus, política e ficção, em geral, caudais de rios abundantes, confluem em De Optimo Reipublicae Statu deque Nova Insula Utopia Libbelus Vere Aureas (Sobre o Melhor Estado de uma República que Existe na Nova Ilha Utopia) ou simplesmente Utopia (1516), dando origem a um novo género onde se fala do que não existe na Terra (um sem/não lugar), mas na imaginação partilhada no plano estético. Género em que conflui a literatura de viagens impulsionada por estas, pela experiência de redimensionamento do mundo em que os portugueses se agigantaram, mérito sinalizado por Morus na sua personagem Rafael Hitlodeu, responsável pelo relato do que “descobriu”. Género que, segundo Raymond Trousson, está marcado pelos seguintes motivos:

“a insularidade, donde decorre a representação ficcional de uma autarcia económica; a regularidade geométrica associada à uniformidade e à estabilidade das relações sociais imaginariamente representadas; o colectivismo que promove o motivo temático da frugalidade do consumo e a felicidade possível do maior número; o dirigismo instituído pela clarividência desinteressada de um sábio legislador cujo programa de organização e de funcionamento da sociedade é voluntariamente aceite pelos cidadãos utopistas; a pedagogia necessária à consumação de um totalitarismo humanista, isto é de uma forma auto-instituída de convivência humana que, sem quaisquer vínculos ideológicos de dependência à transcendência, opera a síntese harmoniosa e final entre interesses colectivos e individuais divergentes.”

Em pórtico, Utopia afirma o objectivo da proposta política alternativa à realidade (“A utopia discurso do muito excelente homem Rafael Hitlodeu sobre a melhor constituição de uma República pelo ilustre Thomas Morus visconde e cidadão de Londres nobre cidade da Inglaterra”) e o Livro II abre com a assumpção do desejo proselitista (“O que vos digo em voz baixa & ao ouvido pregai-o em voz alta & abertamente”), concluindo a obra com a subscrição autoral das propostas do alegado narrador:

“Pus-me, então, a louvar as instituições utopianas e a narrativa feita.
Depois tomei pela mão o narrador, a fim de levá-lo a cear, e prometi que, de outra feita, teríamos ocasião de meditar mais profundamente sobre essas matérias, e de juntos conversar mais demoradamente.
Praza a Deus que isto aconteça algum dia!
Porque, se de um lado não posso concordar com tudo o que disse este homem, aliás incontestavelmente muito sábio e muito hábil nos negócios humanos, de outro lado confesso sem dificuldade que há entre os utopianos uma quantidade de coisas que eu aspiro ver estabelecidas em nossas cidades. Aspiro, mais do que espero.”

Lado a lado, Inglaterra e Utopia, verso e reverso, representação e sua crítica formulada em hipótese alternativa, afinal, qualquer que seja a utopia desenhada.

Se seguirmos o itinerário da imaginação humana, apesar de as configurações positivas e negativas conviverem, expressas que estão nas artes, nas letras e nas ciências, mas também na acção, da pacificadora e organizadora à bélica, constituindo duas colunas vertebrais desse organismo bífido que é a sociedade, talvez se possa registar uma tendência de cedência das utopias positivas às distopias: o désenchantement du monde (Max Weber, Marcel Gauchet) vai fazendo deslizar dos idealismos para as visões crepusculares, em cujas sombras a maldade humana se esconde para nos surpreender. Só no corredor formado entre ambas as conformações ficcionais, negativa e positiva, se desenvolve a consciência proprioceptiva e a do mundo: somos Alice entre os 2 lados do espelho…

Passemos em revista algumas peças do itinerário bibliográfico configurador de propostas diversas, mergulhemos na vertigem das listas (Umberto Eco) das utopias-eutopias que se vão encaminhando para a distopia.

A República (360 a. C), Platão (427-347 a. C) (cerca de 380 AC), a Jerusalém Celeste do bíblico Apocalipse (séc. I d. C.), a Utopia (1516), de Thomas More (1478-1535), A cidade do sol (1604), Tommaso Campanella, a Nova Atlântida (1624), de Francis Bacon, A república de Oceana (1656), de James Harringhton, As aventuras de Telémaco (1669), de François Fénelon, As Viagens de Gulliver (1726), de Jonathan Swift, o Código da natureza (1755), de Étienne-Gabriel Morelly, as Memórias de Planetas (1795), de Thomas Northmore, O manifesto dos plebeus (1795) e A conspiração dos iguais (1796), de François Noël Babeuf, a Viagem por Icaria (1840), de Étienne Cabet, O Capital, de Karl Marx (1848), Erewhon: um mundo sem máquinas (1872), de Samuel Butler, O ano 2000: uma visão retrospectiva (1888), de Edward Bellamy, Notícias de Lugar Nenhum (1890), de William Morris, Uma Utopia Moderna (1905), de H. G. Wells, A História das Utopias (1922), de Lewis Mumford, Ecotopia (1975), de Ernest Callenbach, O Fim da Utopia (1980), de Herbert Marcuse, A Ilha da Mão Esquerda (1995), de Alexandre Jardin, Inglaterra, uma Fábula (1999) de Leopoldo Brizuela, Utopia III (2006), de José de Pina Martins, e muitos mais compõem um trilho que se reclama luminoso, mas onde as evidências projectam crescentes sombras ao longo desse cair da noite opressivo promovido por obras como O Processo (1925), de Franz Kafka, 1984 (1948), de George Orwell, Um Mundo Feliz (1932), de Aldous Huxley, Fahrenheit 451 (1953), de Ray Bradbury, Distrito 9 (2009), Neill Blomkamp, e/ou Antiviral (2012), de Brandon Cronenberg.

As tipologias comummente evocadas também oferecem distopias para todos os gostos: alienígena (Guerra dos Mundos, 1953, A Hospedeira, 2008), ambiental (Nausicaä do Vale do Vento, 1984), cibernética (Watch Dogs, 2017, Relatório Minoritário, 2002, Matrix, 1999), cómica (Brasil,1985, Idiocracia, 2006), consumista (Clube da Luta, 1999, Branded, 2012), criminosa (A Laranja Mecânica, 1971), moral (Beleza Americana, 1999, Cisne Negro, 2010), pandémica (12 Macacos, 1995, Filhos da Esperança, 2006, Ensaio sobre a cegueira, 2008, Maze Runner: Correr ou Morrer, 2014), pós-apocalíptica (Mad Max, 1979, O Planeta dos Macacos, 1968, Divergente, 2012), conspiracionista (Divergente), religiosa (O livro de Eli, 2010), tecnológica (O Exterminador do Futuro 2, 1991, Blade Runner, 1982, Admirável Mundo Novo, 1932, Brilho - Em Busca De Um Novo Mundo, 2013), totalitarista (1984, 1949, V de Vingança, 2005, Brilho - Em Busca De Um Novo Mundo, 2013), etc..

Além disso, como assinala José Eduardo Reis, considerando “a extensa bibliografia sobre a fenomenologia da utopia, verifica-se que, independentemente da focalização disciplinar (literária, estética, histórica, filosófica, psicológica, sociológica, política) ou da orientação temática a que tem sido submetido o seu estudo, é possível distinguir, grosso modo, entre aqueles autores de monografias que adoptam uma perspectiva distendida, alargada, de grande angular, e aqueloutros que focalizam as suas análises a partir da definição rigorosamente disciplinar do conceito de utopia.”

Em Outubro de 1949, Aldous Huxley escreveu a George Orwell sobre 1984, dizendo:

“Within the next generation I believe that the world's rulers will discover that infant conditioning and narco-hypnosis are more efficient, as instruments of government, than clubs and prisons, and that the lust for power can be just as completely satisfied by suggesting people into loving their servitude as by flogging and kicking them into obedience. In other words, I feel that the nightmare of Nineteen Eighty-Four is destined to modulate into the nightmare of a world having more resemblance to that which I imagined in Brave New World. The change will be brought about as a result of a felt need for increased efficiency. Meanwhile, of course, there may be a large-scale biological and atomic war - in which case we shall have nightmares of other and scarcely imaginable kinds.”

Distopias: ficção que se considera antecipação científica! À rebours, segundo alguns, a Utopia (1516) de More ter-se-ia inspirado nas descrições de Américo Vespúcio sobre a recém-descoberta ilha de Fernando de Noronha (1503). O tempo contrariado na configuração do espaço…

No momento da escrita deste texto, o imaginário das férias confronta-se com o das guerras e dos actos terroristas, contrastando este com o dos velhos messianismos que a reflexão cultural vai revisitando (lembro congressos como o Congresso Internacional do Espírito Santo (CIES) 2016 | Coimbra, 16-17/05; Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 14-15/09; Alenquer, 16-18/09/2016 e o Congresso Internacional 500 Anos da Utopia. Tomás Moro e o Sonho de um Mundo Melhor, Lisboa, 24-26/11/2016na Universidade Católica de Lisboa. De um lado, os almejados lugares paradisíacos, com praias deslumbrantes, montanhas apelativas e campo acolhedor; do outro, os do horror: entre eles, o homem projectando a esperança no futuro e revalorizando o que, no passado, considere ter sido positivo. Do seu aqui e agora, promove uma dupla representação, relacionando o antes e o depois por uma espécie de ciclicidade espiralada e justificando o presente como intervalo de transição, atenuando-lhe eventual o sofrimento.

As instâncias internacionais confrontam uma realidade de distópicos indicadores com agendas de objectivos ideais. Passo a demonstrar.

Estudos dos diferentes aspectos da vida no planeta Terra revelam alarmantes indicadores de “grande aceleração” da degradação progressiva das condições de vida no Antropoceno:

“Over just the past few hundred years, human activities have clearly evolved from insignificance in terms of Earth system functioning to the creation of global-scale impacts that:
• are approaching or exceeding in magnitude some of the great forces of nature;
• operate on much faster time scales than rates of natural variability, often by an order of magnitude or more;
• taken together in terms of extent, magnitude, rate and simultaneity, have produced a no-analogue state in the dynamics and functioning of the Earth system.”

Alan Weisnan, em O Mundo sem Nós (2007) e em Contagem Regressiva: a nossa última e melhor esperança de um futuro na Terra? (2013), equaciona o problema do crescimento exponencial da humanidade e seus efeitos e assinala a diminuição da natalidade como a única via de sobrevivência da espécie. Essa questão e a teoria da transhumanismo ocuparão o Inferno (2013) de Dan Brown .

Entretanto, as agendas dos organismos mundiais (ONU) apresentam 17 Objectivos do Desenvolvimento Sustentável que se consubstanciam em 169 metas até 2030:

  1. Acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares
  2. Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável
  3. Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades
  4. Assegurar a educação inclusiva, equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos
  5. Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas
  6. Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos.
  7. Assegurar o acesso confiável, sustentável, moderno e a preço acessível à energia para todos
  8. Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todos
  9. Construir infraestruturas resilientes, promover a industrialização inclusiva e sustentável e fomentar a inovação
  10. Reduzir a desigualdade dentro dos países e entre eles
  11. Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis
  12. Assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis
  13. Tomar medidas urgentes para combater a mudança climática e seus impactos
  14. Conservação e uso sustentável dos oceanos, dos mares e dos recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável
  15. Proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da terra e deter a perda de biodiversidade
  16. Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis.
  17. Promover parcerias para a implementação dos objectivos.

Face às utopias contemporâneas que as agendas da ONU definem, entre esperança e descrença, micro-utopias vão sendo realizadas, sinalizando hipóteses de modos de alterar o mundo, como sublinha Gilles Lipovetsky. Mas o mundo não parece encaminhar-se para essa maravilha sonhada…

Longe, a perder de vista, estão as utopias universalistas do Império do Espírito Santo ecuménico, hoje, substituído pelo pragmatismo do multiculturalismo, que a violência (guerra e terrorismo) assombra mundialmente. Evocamo-las em encontros científicos, mas para onde caminhamos?