Talvez o termo seja conhecido de algumas pessoas (mais mulheres do que homens), principalmente para quem conhece aquele que já se tornou o mais denso e bem acabado tratado sobre os arquétipos do feminino: “Mulheres que Correm com os Lobos”, de Clarissa Pinkola Estés. Mas certamente, a grande maioria das mulheres não reconhece que possui uma mulher selvagem dentro de si.

Comece por identificar se você tem um anseio, uma inquietação interna que lhe faz buscar rumos diferentes daqueles do ordinário e do comum das pessoas; quando você se percebe seguindo estranhas pegadas, que ignora aonde vão lhe levar... Ouvindo sons e sentindo cheiros que para a maioria das pessoas passam despercebidos... Quando você percebe um furor que fervilha continuamente dentro de si... Quando você quer ir mais além do que as explicações que comumente lhe são dadas sobre os mistérios da vida e da morte... Quando você canta para espantar o medo... Quando você se sente indivisível e una com a natureza... Quando muitos lhe procuram para se aconselhar com você...

Fique atenta. São sinais de que Ela está emergindo. Não tenha medo. Deixe que venha para a luz em toda a sua plenitude. Na verdade, a Mulher Selvagem está sempre a pedir passagem e nós não ouvimos o seu clamor.

Mas quem/o que é a Mulher Selvagem?

Segundo a autora citada, do ponto de vista da psicologia arquetípica1, ela é a “alma feminina”, mais do que isto é a origem do feminino. “Ela é tudo que for instintivo, tanto do mundo visível quanto do oculto - ela é a base”:

Ela é a força da vida-morte-vida; é a incubadora. É a intuição, a vidência, é a que escuta com atenção e tem o coração leal. Ela estimula os humanos a continuarem a ser multilíngues: fluentes no linguajar dos sonhos, da paixão, da poesia. Ela sussurra em sonhos noturnos; ela deixa em seu rastro no terreno da alma da mulher um pelo grosseiro e pegadas lamacentas. Esses sinais enchem as mulheres de vontade de encontrá-la, libertá-la e amá-la. (...) Ela ficou perdida e esquecida por muito, muito tempo. Ela é a fonte, a luz, a noite, a treva e o amanhecer. Os pássaros que nos contam segredos pertencem a ela. Ela é a voz que diz: ‘Por aqui, por aqui’.

(Pinkola Estés, 1994, p. 27).

Talvez o primeiro passo para libertar a mulher selvagem seja ter coragem para se destacar da massa e seguir seu próprio caminho, isto é, realizar o processo de diferenciação2. Em nossa cultura há um estigma voltado para tudo o que é diferente, haja vista a necessidade da criação da política da inclusão social. Então, para ser você mesma e deixar fluir o que naturalmente emana de si, é preciso ter ousadia. Isto, na maioria das vezes, acaba se tornando um caminho solitário, quando não é acompanhado de avaliações pré-concebidas dirigidas aos loucos, ou, em sua forma mais branda, aos chamados “casos psiquiátricos”.

Outras vezes, a própria mulher se perde por caminhos e atividades que roubam e/ou desviam a sua energia. É preciso estar atenta aos predadores externos e internos. Trilhar o rumo certo é um desafio para a grande maioria. Diz a autora: “Há uma necessidade correta e oportuna de acordar para um movimento destrutivo dentro da própria psique; para aquilo que está furtando nosso fogo; intrometendo-se na nossa energia; roubando de nós o lugar, o espaço, o tempo e o território para a criação” (Ibid., p. 94).

Muitas vezes isto vem expresso na forma de sonhos. Existe um sonho iniciático universal entre as mulheres: o sonho com o “homem sinistro”. Em geral são terroristas, estupradores, bandidos que a aterrorizam e ameaçam sua integridade física e psicológica. O sonho dessa natureza afirma que a vida da mulher precisa mudar, revela que a sonhadora ficou enredada em algum estado inercial relacionado a alguma escolha difícil, que ela reluta em dar o passo seguinte e evitando arrancar sua própria força das mãos do predador, que ela não está acostumada a funcionar a todo vapor, sem reservas.

A intimidade com a natureza da vida-morte-vida talvez seja o traço mais marcante da mulher selvagem. Trata-se de um ciclo de animação, desenvolvimento, declínio e morte, que sempre se faz seguir de uma reanimação. Esse ciclo afeta toda a vida física e todas as facetas da vida psicológica. Diz a lenda que a Mulher-lobo (uma das facetas da mulher selvagem) em sua caminhada pelo deserto, tem o trabalho de recolher todos os ossos que encontra pelo caminho, particularmente os dos lobos. Quando consegue reconstituir um esqueleto inteiro de um destes animais, ela se aproxima, ergue seus braços sobre ele e começa a entoar um hino. Lentamente o esqueleto começa a se forrar de carne até que a criatura começa a respirar.

A Mulher Selvagem em nós aspira por sua contraparte, aquele que, ao invés de roubar o seu fogo e ceifar-lhe a vida, vem para legitimar os seus símbolos e comungar consigo na aspereza do seu pelo grosseiro; vem para, em união com ela, ajudá-la a se apropriar de seus poderes instintivos: o insight, a intuição, a resistência, a tenacidade no amor, a percepção aguçada, o alcance da sua visão, a audição apurada, os cantos sobre os mortos, a cura intuitiva e o cuidado com seu próprio fogo criativo, e assim fazê-la vicejar na sua plenitude. Segundo a autora citada, para amar uma mulher, o parceiro deve também amar sua própria natureza primitiva. Se a mulher aceitar um companheiro que não possa amar ou que não ame esse seu outro lado, ela sem dúvida sofrerá algum tipo de dano. Por sua vez, o amante mais querido, o amigo ou “homem selvagem” mais valioso é aquele que deseja aprender, aquele que deseja ir além da aparente segurança proporcionada por suas convicções.

Sabemos que a criatura Homem Selvagem também está à procura da sua própria mulher terrena. Com medo ou não, é um ato de profundo amor o de se permitir ser perturbado pela alma primitiva de outra pessoa. O companheiro certo para a Mulher Selvagem é aquele que tem uma profunda tenacidade e resistência de alma. Aquele que está disposto a desemaranhar seus ossos, em uma de suas manifestações mais sombrias que é a Mulher-esqueleto, também chamada de “A Morte”, que é a natureza da vida-morte-vida em um de seus disfarces. Neste caso, A Morte não é um mal, mas uma divindade.

Se quisermos ser alimentados por toda a vida, precisamos encarar e desenvolver um relacionamento com a natureza da vida-morte-vida. Quando temos esse tipo de relacionamento, não saímos mais por aí à caça de fantasias, mas nos tornamos conhecedores das mortes necessárias e nascimentos surpreendentes que criam o verdadeiro relacionamento (Ibid., p. 171).

O problema do amor moderno é justamente o medo da natureza da vida-morte-vida, em especial do aspecto da morte. Em grande parte da cultura ocidental, o personagem original da natureza da morte foi encoberto por vários dogmas e doutrinas até o ponto em que se separou em definitivo de sua outra metade: a vida. Fomos ensinados equivocadamente, a aceitar a forma mutilada de um dos aspectos mais básicos e profundos da natureza selvagem. Aprendemos que a morte é sempre acompanhada de mais morte. Isto não é verdade. A morte está sempre no processo de incubar uma nova vida. Não entendemos que a Morte é carinhosa e que a vida se renovará em seu auxílio.

Segundo Pinkola Estés (1994), três aspectos diferenciam a vida a partir da alma, da vida a partir do ego: - a capacidade de pressentir novos caminhos e de aprender com eles; - a tenacidade necessária para atravessar uma fase difícil; - a paciência para aprender o amor profundo com o tempo. O ego, no entanto, tem uma queda e uma predisposição para evitar o aprendizado. A paciência não é seu forte. Nem o relacionamento duradouro. Portanto, não é a partir do ego inconstante que amamos o outro, mas sim, do fundo da alma selvagem. Todas estas contribuições da autora são extremamente valiosas, principalmente porque o estilo de vida da sociedade moderna nos distancia das manifestações anímicas e de tudo que acontece em nosso interior. Assim, para manter-se conectado, sugiro ao leitor que tome a obra como seu livro de cabeceira.

Ressalto ainda, que a experiência plena e o viver de acordo com a sabedoria da Mulher Selvagem latente em todas nós é uma etapa fundamental da diferenciação e do desenvolvimento da personalidade para todas as mulheres, especialmente aquelas que já transitam na linha tênue entre o mundo visível e o invisível. Isto pode ajudá-las a ter uma vivência plena de totalidade e a se apropriar de seu poder pessoal na sua mais ampla manifestação, além de estar mais perto do Homem Selvagem.

Notas

1 Arquétipos correspondem à parte herdada da psique. São também padrões de estruturação do desempenho psicológico ligados ao instinto. Para Jung, o fundador da psicologia analítica, arquétipo é um conceito psicossomático, que une corpo e psique, instinto e imagem (Samuels et. alii., 1988).
2 Uma palavra frequentemente usada por Jung, que significa distinguir partes de um todo, desemaranhar, separar aquilo que antes estava unido inconscientemente, resolver (Samuels et. alii., 1988).

Referências

ESTES, Clarissa Pinkola. - Mulheres que Correm com os Lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1994. 627 p.

SAMUELS, A.; SHORTER, B.; PLAUT, F. - Dicionário crítico de análise junguiana. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1988. 236 p.