Quando Machado de Assis, em Dom Casmurro, anuncia a génese da sua obra – num romance que, ainda por cima, é realista –, interessantemente afirma que o seu evidente objetivo é “atar as duas pontas da vida e restaurar na velhice a adolescência” deitando “ao papel as reminiscências que vierem vindo de forma a voltar a viver o passado”. Admite pois que, em qualquer situação, o homem ao escrever, escreve-se. Que tem isto a ver com Homenagem a Andy Warhol de Armando Ponce de Leão? Pois tudo e nada.

Nada porque não vislumbro envelhecimento no autor de uma prosa viva, acutilante, ritmada, que impõe o conciliábulo ironia/humor pouco compatível com um amolecimento serôdio. Tudo porque dela irrompe a necessidade premente de fazer da vida um continuum arrastando o passado para o presente, embrenhando-os numa edificação carente da plenitude que move qualquer ser humano. Tudo ainda porque, em Homenagem a Andy Warhol, o autor assume explicitamente que aí estão plasmadas as suas reminiscências.

Comprova-o o pouco inocente paratexto (p.11) extraído de Memórias de Adriano de Marguerite Yourcenar. Através dele os autores real e ficcional, ou alguém por eles, estabelecem um pacto em que confirmam uma escrita do eu camuflada pelas várias personae reivindicadas pelo universo diegético de natureza ficcional. A cedência de protagonismo às ditas personae evita o exercício da simulação e da imitação da vida para tornar o discurso na própria vida dando-lhe vida própria. Mesmo quando Gusdorf afirma “Écrire, c’est toujours écrire moi” não deixa de ter em mente a barreira imprecisa entre o que se é, o que se supõe ser e aquilo que a escrita reproduz. Livrando-se de todos estes problemas, ludibriando o leitor com avanços e recuos, cedendo à comédia e ao drama, Armando Ponce de Leão parece reivindicar para a sua obra a denominação de contos.

Pois que sejam, se assim o quer e assim o anuncia o criterioso prefácio de Fernando Paulouro das Neves. Não me prenderei com a poética dos géneros ainda que queira deixar lavrada a minha admiração pelos autores da narrativa breve. De facto, parece-me que o conto está para o romance como o soneto para a canção e sempre me questionarei sobre qual exige maior genialidade. Imagino Aquele Grande Rio Eufrates de Ruy Belo circunscrito num soneto, ou o Ulysses de James Joyce (que aqui espreita) reduzido num conto, e sinto uma concentração emocional, e uma densidade conflitual explosivas, a mesma que me provoca esta Homenagem. Consciente de um certo exagero, transformo este tom hiperbólico numa homenagem à narrativa breve quase abandonada desde Allan Poe e agora de novo emergente.

Assim sendo, direi que Armando Ponce de Leão a trata com uma subtileza clivada de desafios e provocações, ao manipular aquele terceiro estado a que alude Jauss, de forma a assistir a um espetáculo que também protagoniza, num processo de autognose disfarçado nas linhas necessariamente ficcionais.

O desafio começa no próprio título, só aparentemente enganador do conteúdo da obra. Esclareço: pospondo, por enquanto, a semântica textual, erijo a policromia e a polifonia discursivas enformadas em contrastes de luzes e sombras, cruzando sons e objetos de ontem e de hoje vaticinados em toadas sinestésicas. O visualismo é de tal forma apelativo que, não raro evoca Andy Warhol em estreita cumplicidade com Truman Capote. Contos há que sugerem, pela reprodução mecânica, temas do quotidiano cheios de elementos descartáveis.

Colho o conto que dá o nome à obra e tudo concorre para a veloz imersão num precipício. Num estilo torrencial à Kubrick, o cineasta e mestre de xadrez, Armando Ponce de Leão move sem acrimónia as peças no tabuleiro da vida sabendo que vai ser dado xeque ao rei. Umas chaves, metáfora do lar, episodicamente desaparecidas, mesmo se posteriormente encontradas no balde do lixo, prenunciam a desagregação de uma pequena família constituída por um pai com alzheimer, uma filha que morre em consequência de um desmancho e uma mãe que, num instinto de sobrevivência, “ia de autocarro, quase uma hora, arranjou o seu lugar à porta de uma igreja, havia sombra de manhã e à tarde, foi sorte, não precisava de meninos ao colo, as pessoas ajudavam” (p. 78). A vida – um longo filme de Andy Warhol, a procura das chaves entre facas e latas de Campbell’s perante os olhares indiferentes de Monas Lisas e Marilyns.

O tom metafórico a que aqui aludo, mais no âmbito conceptual e menos no linguístico, que se reduz à ponta do icebergue, é visível ao longo de toda a obra e configura a viagem da vida. Armando Ponce de Leão constrói sistemas conceptuais abstratos a partir de imagens esquemáticas e conceitos diretamente ligados à experiência; assim sendo, ainda que os mecanismos metafóricos não sejam exclusivamente linguísticos mas sim estruturalmente conceptuais, são acessíveis mediante a análise linguística.

Tal é o caso de “O Tubo” onde, numa situação de autodiegese, o narrador empreende a longa viagem da vida, consciente de que “quanto maior é o saber, maior é naturalmente o saber da ignorância” (p. 60), e mais consciente ainda de que neste percurso vertiginoso, abrupto, arrepiante encontra gente “de todas as idades e cores e raças e extratos sociais” rumando a um mesmo fim. Torna-se interessante aqui observar, como também se observa em “Pranto da casa nos pinhais” (p. 17), “O tetraedro ou os limites do conhecimento” (p. 33) ou “O bailarino atleta” (p. 103), entre outros, a explícita e assumida empatia conteúdo / forma. O ritmo fraseológico acompanha o ritmo da queda. Para e avança, encolhe-se e alonga-se, volatiza-se e corporiza-se coordenando uma mancha gráfica ondulante, asfixiante, torrencial, que arrasta o leitor envolvido à exaustão. A forma serve o conteúdo sem preocupações de ortodoxia narratológica reivindicando um certo automatismo psíquico e insinuando o texto-produto na senda de Maiakovski. A tudo isto não será alheio o recorrente uso do polissíndeto reivindicativo de uma urgência apocalíptica no mistério da vertigem.

Cautamente me aproximo, apenas me aproximo, da noção de uma literatura do absurdo, um absurdo calculado, que corre apenas os riscos que pretende correr. Aqui há a certeza de que a vida tem sentido e, apesar do abismo, sente-se a consciência da necessidade de uma posição lúcida de vigília, pois se o absurdo aniquila as possibilidades de liberdade eterna, devolve e exalta, ao contrário, as da liberdade da ação. Contudo, aqui e além, um sem-sentido, uma certa inconformidade com as leis da coerência e da lógica, uma desconstrução textual parecem tudo reduzir a um estado de ad absurdum revelador de contradições internas e impossibilidades lógicas.

Nestes contos, espreita um Sísifo sem nome que demonstra que pelo absurdo se resiste a todas as questões existenciais, dando respostas ao sentido da existência. Aqui se sente a angústia do nada para logo se achar resposta nas memórias do passado. Por isso Camus, Kafka, Beckett espreitam aqui e além, nem sempre sendo convidados a entrar, porque o ser humano de Armando Ponce de Leão ainda acredita no sentido da condição humana, crença sustentada na tal atadura das pontas da vida de que fala Machado de Assis. O nonsense, o grotesco, o fantástico, um certo tipo de humor, a que chamarei pérfido por rondar a negrura de forma desafiante e suscitar o equívoco entre comédia e tragédia, coabitam pacificamente com a memória mesmo se desconstruída pelo tempo. Presentifica-se então um outro eu que, mesmo quando dissimula, se adivinha reclamante dos afetos que podem justificar a vida.

A este propósito não posso deixar de evocar o magnífico conto-poema “A Casa da Mãe” reivindicador de um intimismo ab imo naquela “casa sagrada, confortante, domínio deslumbrante” (p. 173) que parece neutralizar desencontros através de um improvável regresso às origens. Introversão, secretismo anímico, família, quotidiano impõem-se com simplicidade e enorme discrição. Presentifica-se uma relativa hiperintimidade, mesmo se, paradoxalmente, irónica e impudica, traduzida em comportamentos excêntricos, que cortam radicalmente com os arquétipos, debruçando-se o homem sobre o enigma que ele mesmo é. Percurso vital, tentativa de resgate do ontem no hoje, o quase desespero dos espaços e dos tempos perdidos, a inviabilidade do “naître, vivre et mourir dans la même maison” de que fala Sainte-Beuve, tudo numa desconstrução surrealizante de um aparente desânimo. Não mais a casa da mãe mas o impessoal hotel, “com estada firme, sair no dia tal” (p. 173), onde o nonsense é refúgio de memórias: “pedi a refeição no quarto. Enchi a banheira com água bem quente, fumegante. Despejei delicadamente todo o conteúdo das travessas, toda a refeição na banheira […] Tomei banho nas ameijoas à Bolhão Pato, no consomé, no cherne grelhado, no esparregado […] no sorvete de framboesa […] no risoto de cogumelos com presunto (a lembrar os míscaros da minha infância), na salada de frutas […] na mousse de chocolate” (pp. 175-176)

Há um deambular frenético, obsessivo em demanda da “véspera de não partir nunca” de que fala Álvaro de Campos. Cúmplices, conteúdo e forma agilizam um perigosíssimo funambulismo com um fim anunciado: “Noto agora que as bordas das conchas das amêijoas são ligeiramente cortantes, dão um toque inesperado á pele, um agridoce novo, só comparável ao sabor do fino e fundo corte da lâmina no meu pulso” (p. 176). A morte viabilizadora da vida? No hotel, o banho quente; líquido amniótico na casa da mãe. O sabor agridoce do sangue, uma promessa de vida que se cumpre no desejo de retorno ao útero materno onde uma outra se inicia. Assim o leio com espanto, com admiração, com solenidade. Solenidade que é rito de toda a obra pois que agarra, vincula, exige disponibilidade porque cada um de nós fará, terá que fazer, esta Homenagem a Andy Warhol. Pouco interessa a forma. Interessa sim a explicação – mesmo se através do absurdo – da vida.

Contos? Talvez também o sejam, mas são, antes de mais, o pré-anúncio de que, numa forja mais ou menos longínqua, se esconde a poesia concreta.

Quanto ao resto, que é a maior parte mas que aqui não disse, apelarei a uma leitura reflexiva, respeitosa, solene dos 20 contos que enformam esta Homenagem corporizados na excelente edição da Minerva, e que são uma inspiração para a vida. Não se esperem facilidades, mas grandes perturbações como é mister da obra de arte. Resguardo-me, por agora, em Andy Warhol: “in the future everyone will be famous for fifteen minutes!”