A arbitrariedade mais uma vez nos choca à luz do dia. Ser conivente com abusos como o ocorrido na praia de Nice, quando uma senhora foi vergonhosamente constrangida por policiais que exigiam que ela retirasse o seu traje de banho para permanecer na praia, é uma postura criminosa. Não é o papel do Estado coagir, assustar e segregar. Sim, este foi um ato de segregação, de racismo, e com estes valores ninguém deveria compactuar jamais.

Porém, bem como a senhora em questão, eu sou mulher. E como tal, simplesmente não consigo advogar a favor do burkini.

Eu não gosto do burkini porque, antes de mais nada, eu realmente acredito que nenhuma mulher em sã consciência sinta prazer em usá-lo. Sob o sol escaldante do verão, diante do mar, este traje de banho deve oferecer o mesmo nível de conforto que os espartilhos ofereciam às mulheres do século XVIII, ou que os sapatos de madeira ofereciam às gueixas. Isso não quer dizer que eu seja a maior defensora dos biquínis ocidentais, nem que eu acredite que eles são a melhor expressão da moda praia em detrimento de outras possibilidades que poderiam existir, mas o fato é que eu olho para essas mulheres, para a atleta egípcia suando profusamente, ofegando mais que qualquer uma de suas rivais, jogando com o corpo totalmente coberto em plena areia de Copacabana, e me sinto sinceramente aliviada de não estar na pele delas. E essa sensação irremediavelmente me leva a questionar, será que está realmente tudo bem em jogar toda essa situação na conta do relativismo cultural e fingir que não há uma coerção perversa por trás dessa escolha?

Se por um lado, a liberdade individual da senhora em Nice foi gravemente ferida com a proibição do burkini, por outro, o fato de ela ter que recorrer a uma versão lycra da burca (um dos maiores símbolos da opressão contra a mulher hoje) para ir à praia mostra que talvez ela já não seja tão livre, mesmo sem a truculência da polícia francesa. Estas mulheres se encontram presas entre dois árbitros implacáveis: a intolerância religiosa do ocidente e a inflexibilidade do meio social/étnico do qual elas fazem parte.

Passando da França ao Rio de Janeiro, Doaa Elghobashy é uma atleta de alto nível, tanto que sua dupla de vôlei de praia se classificou para os jogos olímpicos. Ela declarou que o seu traje não a impedia de fazer o que gostava, inclusive de jogar vôlei - ora, é só o que nos faltaria. Mas será que, ao acumular tanto calor, esse traje não a está impedindo de ter um melhor rendimento? Será que, em última instância, ele não impede a atleta de ganhar? Mas Doaa parece satisfeita em apenas participar e dar a impressão de que só o que falta é tolerância. A maior parte da imprensa também parece ter se sentido assim e, dessa forma, ela se tornou um objeto bonitinho e curioso.

De fato, ela tem razão em que falta tolerância. Obviamente não só com as mulheres do mundo árabe, todas nós somos alvos do escrutínio machista e vemos nossos corpos coisificados pelos meios de comunicação dia após dia. Nesta mesma edição dos jogos dos quais participaram Doaa e sua companheira, uma ginasta mexicana foi criticada duramente pelo seu peso. Chateada, disse que “doeu”. Isso sem contar os inúmeros ângulos absurdos das câmeras nas partidas femininas, onde nos deparamos com cada centímetro de bunda de cada uma das atletas. Realmente, a falta de respeito ainda dói bastante em todas as mulheres, de leste a oeste e de norte à sul.

Não é porque o corpo feminino de forma geral seja objeto de machismo, que podemos deixar de pensar na questão da indumentária pois ela é extremamente simbólica e, ao mesmo tempo, tem implicações reais no nosso cotidiano. Por que as atletas, sejam elas de qualquer lugar, não podem usar o que simplesmente seja mais adequado para a prática esportiva? Por que não podemos assumir sem pudor um traje de banho que deixe o nosso corpo o mais confortável possível na praia? Por que ainda tenho vizinhas que não se sentem no direito de cortar o cabelo e usar calça comprida, e desconfiam de quem corta e usa? Por que no século XXI essas inúmeras imposições ao nosso corpo (e apenas ao corpo feminino) ainda são consideradas como expressão da fé? Será que é essa a noção de fé a qual gostaríamos de expor as futuras gerações?

Sinceramente, eu não sei qual é a saída mais rápida para nós no sentido de uma emancipação plena e da conquista do respeito que qualquer ser humano deveria inspirar, independentemente do gênero. Não sei qual a melhor saída para a mulher árabe. Mas eu sei que não é um burkini.