Carnaval com índio, penas e discurso de preservação da natureza não é nenhuma novidade. Em tempos de grande discussão viral sobre apropriação cultural, o uso indiscriminado da fantasia indígena nos bloquinhos de carnaval e mesmo na Sapucaí ou no Sambódromo não foi a maior polêmica na festa mais importante de 2017, mas sim três versos de um samba-enredo e uma ala de escola de samba.

Muitas discussões polêmicas dos últimos tempos ganham resolução e visibilidade não pelo número de pessoas que se manifestam sobre uma causa ou mesmo pela nobreza da causa em si, mas sim o peso do poder das pessoas envolvidas e seu dinheiro. E vou dar um exemplo contundente. Protestos de alunos secundaristas contra uma reforma nefasta no ensino médio no ano passado não causaram tantas avalanches de notas de repúdio - e nem mesmo impedimento da aprovação da mesma - como o enredo da escola de samba carioca Imperatriz Leopoldinense: Xingu, o clamor que vem da floresta. Mas você deve estar se perguntando: mas por quê? Bem, quando a carapuça serve...

A escola do tradicional bairro carioca de Ramos resolveu desenvolver seu enredo sobre o Parque Indígena do Xingu (PIX), que fica situado entre o Mato Grosso e o sul do Pará, porção sul da Amazônia brasileira. O Parque, demarcado no início da década de 60, se divide em três partes: o Baixo, o Médio e o Alto Xingu, respectivamente porção norte, central e sul. Desde a década de 80 o Parque e seus 16 povos vêm sofrendo inúmeras mazelas: invasão do território por pescadores e caçadores, ocupação desordenada do entorno, queimadas para fazendas pecuárias a nordeste e avanço das madeireiras a oeste.

O mais recente agravante desse drama xinguano é a construção da terceira maior usina hidroelétrica do mundo, a usina de Belo Monte no Rio Xingu ao norte do Pará. Além de mudar o curso do rio, o que já impacta na fauna e flora do local, tal intervenção compromete o transporte fluvial, pois o curso natural do rio é único meio de acesso a médicos e comércio para muitos. E para encurtar essa lista de desgraças basta mencionar que a diminuição da vazão afeta comunidades indígenas que dependem da pesca e que pautam suas vidas ao longo do rio.

O parque está sofrendo um abraço mortal. Tais situações causam incontáveis confrontos entre entidades do agronegócio e os povos indígenas e você já deve imaginar o resultado disso. Nessa esteira, embora a escola de samba carioca tenha enaltecido o estado de Goiás, o agricultor e, de forma geral, o agronegócio no ano passado, esse ano sofreu bordoadas virtuais ao dar ouvidos ao clamor que vem do Xingu e por homenagear os povos indígenas da região e tratar da preservação do meio ambiente.

Três versos do samba-enredo (“O belo monstro rouba as terras dos seus filhos / Devora as matas e seca os rios / Tanta riqueza que a cobiça destruiu!”) e a ala “Fazendeiros e seus agrotóxicos” foram o suficiente para despertar a ira do segmento do agronegócio a tal ponto que o senador Ronaldo Caiado (DEM), grande líder da bancada ruralista, e cuja família se encontra em uma lista de empregadores que fizeram uso de trabalho escravo, cogitou propor no Senado uma sessão temática “para discutir, debater e descobrir os financiadores da Imperatriz Leopoldinense e os interesses em denegrir o agronegócio”, nas palavras do próprio Caiado.

Muitas notas de repúdio transparecem a parca capacidade de se interpretar um texto poético e a macarronada que fizeram ao juntar a má interpretação dos versos do samba com o título da ala (e não nos esqueçamos da carapuça, é claro!). Dessa macarronada, salpicada com frases de ódio, preconceito e ignorância do que é de fato a diversidade do Brasil, encontramos o seguinte:

“(...) o enredo vem carregado de desinformação sobre a realidade do agronegócio brasileiro, quando chama-o de “belo monstro” que “rouba as terras dos seus filhos, e acaba com as matas e seca os rios”.

“A abordagem generalista (...) sobre o produtor rural, não separando o “joio do trigo”, é incorreta, injusta e inadequada (...). Levar ao público a mensagem de que o rural brasileiro, em geral, é um desmatador de florestas, um envenenador de alimentos e um vilão do meio ambiente, é socializar a desinformação e cometer um crime de lesa pátria.”

“(...) extremo desconhecimento da causa e da história, (o enredo) manifesta em sua composição uma versão odiosa, repugnante e preconceituosa, totalmente distorcida do setor agropecuário brasileiro, repassando uma imagem de destruidor de florestas e da natureza, invasor e monstro, num evento cultural de conotação internacional que é o Carnaval (...). Os trabalhadores do agronegócio, por respeito aos postulados democráticos, perdoam também nesta nota aqueles ignorantes do samba.”

Por fim, o queijo ralado da nossa macarronada são os dizeres da apresentadora do programa Sucesso no Campo, da Record Goiás, Fabélia Oliveira. Em 5 minutos de um discurso – esse sim! – repugnante, ela mostra total desconhecimento da realidade dos povos originários brasileiros ao dizer que eles não deveriam usar geladeiras, nem tomar remédios e que deveriam ser “originais”, sem nada de tecnologia.

Por conta desse imbróglio escancarado na mídia, muitos esperavam reais protestos durante o desfile e a ausência dos mesmos gerou frustração, tanto nos espectadores quando em alguns indígenas que não tiveram voz, como as mulheres líderes de aldeias convidadas para o desfile. A inominável emissora que transmite os desfiles foi superficial em seus comentários – que costumam ser tão detalhistas quando convém! – e não recebeu os caciques e indígenas no seu luxuoso estúdio in loco como sempre faz com os homenageados das escolas e que fizera por longos minutos com a homenageada da escola que desfilou antes da Imperatriz.

Apesar de tanta polêmica, da ausência de informação dada ao público na transmissão, das notas baixas que a escola recebeu, uma coisa positiva ficou: a expressão de alegria e orgulho nas redes sociais dos indígenas com palavras, fotos de televisão e postagens ao se virem, pela primeira vez, representados em carne e osso na maior festa do Brasil. O Carnaval pode passar, as mentes dos brancos se esquecerem, mas todos os indígenas que se viram espelhados ali em rede nacional certamente sentiram que pelo menos o eco do grito da floresta foi ouvido.