Tudo que não invento é falso - Manoel de Barros

Da pintura ao cinema

Quando o cinema surge no final do Século XIX recorre, inevitavelmente ao modo de representação do mundo fixado pela pintura. Modo este que foi sendo alterado ao longo do tempo e que, na altura da invenção do cinematógrapho, variava entre as preocupações com a luz do Impressionismo e a tentativa de construção de um discurso sobre a realidade imposto pela pintura Realista. O cinema vai, portanto, absorver as questões que estavam presentes nestes dois movimentos artísticos e ainda incorpora, na formação da sua nascente linguagem, os princípios da fotografia que já atingira a maioridade por aqueles tempos.

De reprodução inocente da realidade, construída por imagens denotadas, ou como quer Barthes, em “estado adâmico”, o cinema rapidamente se converte em discurso e cria uma linguagem própria que a distancia de seu estado especular. A imagem especular só existe na presença de sua unidade geradora, não funcionando como substituto, ou seja, não existindo enquanto signo. A arte não é um mero espelho, ela converte o mundo em signos e significados distintos. Entre as experiências realizadas pelos movimentos de vanguarda e a nascente indústria cinematográfica, os filmes adquirem um estatuto de linguagem.

Apesar das vanguardas históricas se interessarem pelo cinema, procurando desvendar a potencialidade do novo meio, o discurso cinematográfico par excellence é aquele que foi produzido pela grande indústria norte-americana desde o chamado cinema primitivo (1895-1929) e que concebeu um modo de representação a que Burch vai chamar de M.R.I – Modo de representação Institucional. O cinema norte-americano é, sem dúvida, uma grande e rentável indústria. Tanto que na época da quebra da bolsa, em 1929, enquanto a maioria das empresas faliam, a indústria cinematográfica conseguiu não só sobreviver, como enriquecer os seus produtores. Um cinema marcadamente industrial e voltado para o entretenimento mas que não deixou de encantar os críticos e futuros realizadores dos Cahiers du Cinema – através da sua política do auteur, deram crédito a uma boa parcela dos filmes americanos.

Os Cahiers du Cinéma destacaram dentro da massa indistinta do cinema industrial, um grupo de realizadores a quem eles consideravam autênticos autores. Seus eleitos seriam génios que conseguiam criar seus próprios filmes, deixando neles a marca de sua genialidade, e não se submetendo aos moldes convencionais dos outros filmes produzidos em Hollywood. Não negando a genialidade dos eleitos pelos Cahiers, só posso acrescentar que o verdadeiro auteur é pura ficção. Dentro do esquema de produção dos filmes americanos, somente tem o controlo absoluto de seu filme, aquele que também conseguir produzi-lo. Alguns, como Hitchcock, conseguiram se libertar do sistema de produção hollywoodiana e produzir os próprios filmes. Mas enquanto viveram sob a égide do sistema, apesar de possuir uma liberdade maior, eles tiveram que se submeter a esse sistema.

Uma linguagem em constante mutação

A marca registada do cinema americano era o happy end. Mas, como todas as fórmulas, esta também sofreu desgastes e com a mudança do próprio mundo, exterior à tela, em que o sonho dourado do fim da II Guerra foi sendo substituído por outros terrores mais quotidianos, como a Guerra Fria, a morte de Kennedy, a Guerra do Vietname e a batalha atómica que ia corroendo as certezas do futuro. No cinema aparece o Neorrealismo, a Nouvelle Vague, experimentos que antes estavam limitados a alguns autores acabam por alterar a decupagem clássica, que, rapidamente, absorve um pouco de tudo para recuperar seu público perdido.

O Modo de Representação Institucional começa a sofrer fraturas e estas fraturas funcionam como catalisador para um outro modo de representação, mais próximo das novas cinematografias que aparecem um pouco por toda a Europa e resto do mundo – um outro modelo de cinema, o chamado filme de arte, herdeiro da tradição das vanguardas e da tentativa de se desconstruir o discurso imposto por Hollywood. Um discurso que caminha em direção ao “controle total da realidade criada pelas imagens – tudo composto, cronometrado e previsto” (Xavier, 1984:31). Parte-se do discurso da opacidade para o discurso da transparência: o cinema reconhece que a não reproduz a realidade, mas que é um discurso sobre a realidade, e que o mascaramento da existência deste discurso serve para reforçar um modelo institucional, que começa a abrir falência em meados dos anos 50.

Entre a palavra e a imagem

A tentativa de apreensão do discurso imagético sempre foi problemática. De um lado temos a palavra, "l’instrument de l’intellect, de la raison discursive et abstraite” e do outro a imagem, “le véhicule naturel des affects, des mythes et du pathétique, bref du «sentiment» …” (Barthes, 1993: 952). E no meio, a procura de uma teoria que desmistifique a imagem e a torne palpável e de fácil assimilação, própria para o consumo imediato, como é o caso da imagem publicitária, a única que anuncia o seu procedimento retórico. O que não invalida que o mesmo esteja presente em toda e qualquer imagem cinematográfica, também discurso e também construída de maneira teleológica prevendo uma futura compreensão e apreensão daquilo que diz e da sua aparência que encanta e seduz.

É importante perceber que a necessidade de desvendar completamente a imagem, de encontrar uma interpretação iluminadora é típica da modernidade. O que não pode ser interpretado, não pode ser dominado, e o homem-intelecto tem que apreender o mundo de uma maneira racional. Domado o inefável, destrói-se o mito e tudo fica no terreno do compreensível. A exigência da interpretação na modernidade, decorre também da necessidade de se compreender o novo, que surgiu com as vanguardas, e que não é facilmente digerível.

Se o homem moderno quis acabar com os mitos, ler tudo à luz da razão, chegou a um momento em que a própria desmistificação foi mistificada. "O momento da desmistificação da desmistificação pode, assim, ser considerado o verdadeiro momento da passagem do moderno ao pós-moderno" (Vattimo, 1992: 49). Voltamos aos mitos, mas eles agora estão revestidos com uma aura tecnológica. O cinema, que surgiu na tarda-modernidade, ajudou a construir, ou reforçar, mitos que vão sendo reciclados a cada filme. Há quem acredite que o cinema perdeu sua essência e se aproxima cada vez mais da arte do período, do clima de uma era que abandonou as grandes questões e já não pensa em dominar racionalmente o mundo, aceitando que, por trás de tudo, existe o caos.

A linguagem do cinema vai sendo construída sob um duplo eixo discursivo, de um lado a imagem e de outro o texto, que tende a evocar a sua relação com o real. Ou pelo menos, com as imagens que se assemelham e se referem ao mundo que existe para além do ecrã. O cinema, desta forma, consolida uma ideia que a pintura já tentara sedimentar: a de que as imagens podem ser cópias, mais ou menos perfeitas, da realidade. Conforme Noël Burch, o século XIX presencia o surgimento de tecnologias variadas que vão desembocar no aparecimento do cinematógrapho. Cada uma delas era um novo passo em direção a uma recriação da realidade, “até a realização de uma ilusão perfeita do mundo perceptivo”. O século burguês apropria-se da fotografia (e posteriormente do cinema), que acaba por substituir o sistema de representação do espaço surgido no Quattrocento. (Burch, 1995, pp. 21-4).

Ao incorporar o modelo da perspectiva renascentista que se converteu no cânone ocidental e que se propagou como sendo a forma correta de se representar o mundo e as coisas do mundo, a câmara cinematográfica reproduz e reforça um determinado discurso, aquele que se afirma capaz de reproduzir o real, satisfazendo a um princípio atávico que não resiste ao medo da destruição e do caos. Ao reconstruir o espaço do mundo como espaço cénico controlado e regulado, o cinema atrai para si os olhares que se projetam naquelas imagens e têm, pelo menos na curta duração da diegese, a ilusão de que seus pés estão bem assentes na terra e o desejado equilíbrio foi, finalmente, reencontrado.

Entre o real e a imagem

"Le temps de l'image est venu!" Estamos mais do que nunca mergulhados nas imagens que atropelam nossos olhos a todo instante. Evgen Bavcar, um fotógrafo cego, disse que "só podemos ver o que sabemos. É o mundo que está cego. Há imagens demais. É uma espécie de poluição. Ninguém pode ver nada. É preciso voltar às trevas para achar as verdadeiras imagens". O estádio atual em que nos encontramos exige que a todo momento nossos sentidos estejam despertos para interpretar/vivenciar imagens e mais imagens. Mesmo que a nossa interpretação venha a ser uma recriação do que é visto, precisamos de alguma forma ser orientados até para saber em que direção repousar o nosso olhar. Orientar não significa impor, mas dar alternativas que podem ou não ser utilizadas.

O cinema encontra-se hoje num outro momento, atravessado por novos textos e contextos, pela realidade da imagem digital – estamos na era da superinformação. Um tempo que corrobora as palavras de Santo Agostinho – "Apesar do homem se inquietar em vão ele caminha na imagem". Caminhamos nas imagens diárias e naquela que se projeta no ecrã: o grande espelho contemporâneo. O enigma da Esfinge foi desvendado. O Homem não tem mais que responder ao inanimado-objeto, ele agora tem questões que, talvez, somente este objeto possa responder. O homo-sapiens evoluiu na escala das espécies para o homo-consumus, e seu desejo é desviado para os objetos, que aparentemente suprem sua falta de tudo, sua eterna incompletude. A angústia do ser diante do Nada (segundo Heidegger) é a marca registada de nossa época, que substitui este "nada" pelo simulacro de uma presença qualquer. E a imagem em movimento transforma-se, a cada dia, tomando o lugar do mundo que ela representa. E cada vez mais caminhamos na imagem e para a imagem. E o real é apenas um capítulo desta história.

Referências Bibliográficas

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