“Tem rolamentos?”, a resposta seria inevitavelmente uma de duas: “raspa-te masʼé daqui pra fora!” ou qualquer coisa mais vernácula com o mesmo sentido, ou então um “vamos lá a ver” encorajador. Às vezes tinham, rolamentos gripados mas ainda utilizáveis, e nós pulávamos da oficina de mecânico para fora, com o tesouro nas mãos, a correr para o estaleiro onde estávamos construindo o carrinho de rolamentos. Ganapos, agarrados a meia-dúzia de madeiros, caixotes velhos ou paletes meias-partidas, uns pregos, um pedaço de corda e os valiosíssimos rolamentos… algum engenho e passadas umas horas já se deslizava ladeira a baixo, com o vento a zumbir na orelhas e os rolamentos a fazer “tác-tác-tác-tác…” nos passeios de cimento ladrilhado. A brincadeira acabava normalmente com os joelhos esfolados, os cotovelos maltratados, umas calças rotas e mais uma camisola para a mãe consertar… ou de maneira pior, quando uma vez resolvemos saltar por cima de uma fogueira, como se via no cinema: acendemos a pira com jornais velhos e o carrito mais o condutor lá saltou, mas esquecemos que o “kispo” de nylon não era propriamente um fato de piloto à prova de fogo e foi o cabo dos trabalhos para apagar o incêndio sem queimaduras de maior. Ainda assim o bravo saltador não escapou de uma passagem pela farmácia, em que a peta que inventámos não colou, nem por sombras.

O Porto era uma cidade fundamentalmente cinzenta. A menos que se olhasse de cima, do alto da Torre dos Clérigos onde íamos deitar aviõezinhos de papel: daí as telhas patinadas pelos musgos davam-lhe outra tonalidade, mais brilhante, mais viva. Mas de cá de baixo, das ruas, o Porto era cinzento. Cinzento pontuado de amarelo, pelos “eléctricos” que passavam ritmadamente nos trilhos que corriam toda a cidade. Nenhum garoto que se prezasse deixava de aprender duas coisas, no Porto: entrar e (principalmente) sair dos “eléctricos” em andamento e – mais perigoso mas mais divertido – ir pendurado sem pagar bilhete. Quando os “tróleis” (autocarros eléctricos, que andavam sobre rodas com pneus, e que tinham dois “tróleis” em vez de apenas um, como os “eléctricos”) invadiram a cidade a arte de andar “de pendura” estendeu-se a este novo meio de transporte. Era ainda mais perigoso (ia-se dependurado na traseira, agarrado às bobines onde se enrolavam os cabos que prendiam os “tróleis”, com os pés apoiados no pára-choques”, à mercê de um escorregão e de ser atropelado pelo carro que seguia atrás do “trólei”…) mas nada demovia a garotada – nem os polícias, nem os “picas” que de vez em quando saíam e nos enxotavam, nem algum condutor mais agarrado às regras de trânsito que cuidava de expulsar a catraiada que enxameava as traseiras dos pesados “tróleis”.

E havia outras maluquices que a ganapada não deixava de fazer… duas das mais tolas, mas mais divertidas, eram uma, escalar a pé o grande arco da ponde da Arrábida, e outra, ir apanhar ondas agarrado às escadas de ferro que desciam o exterior do “molhe”, na Foz. A ideia absurda de calcorrear o arco da ponte dʼArrábida nem parecia tão louca assim enquanto se tratava de subir… era marinhar por ali fora, parecia coisa fácil… já a descida – porque depois de lá chegar acima havia que descer! – era de respeito, e muitos que começavam cheios de valentia acabavam com muita vontade de berrar pela “mãe”, engolindo em seco as lágrimas que assomavam e fazendo das tripas coração para não abrir um pranto de puro pânico. O banho no “molhe” também não era propriamente a ideia mais sadia ou mais inteligente: quando o mar batia, onda atrás de onda, nas pedras do forte paredão nós, doidos varridos, garotos, agarravamo-nos com unhas e dentes às escadas de ferro para não sermos levados por aquelas imensas massas de água. Que eu saiba nunca acabou mal, mas foi absoluta sorte, que a tontaria era rematada. Depois era chegar a casa a pingar, tirar a roupa seca da caixa do correio – onde tinha sido cuidadosamente colocada, de caso pensado – e entrar à sorrelfa, como se nada fosse.

No Porto havia bandos de garotos por todo o lado. Livres, sem peias (sem telemóveis) e sem controlo de espécie alguma – ao menos assim nos parecia na altura. Saíamos de casa e passávamos a tarde toda fora, a pé, de bicicleta, como calhasse. Havia “chupas” (com salmonelas, diziam os Pais) por meia-dúzia de tostões nos quiosques, onde também se vendiam cigarros avulso – coisa interdita mas florescente, que as mesadas não chegavam para comprar um maço inteiro. E havia caves de bilhar em quase todos os cafés! Caves com um cheiro muito próprio, onde jogávamos “snooker” que a arte não chegava para o bilhar livre. Ora jogos amigáveis, a dividir por todos, ora ferozes “bota-fora” ou ainda mais aguerridos ao “perde-pagas”. Um “tirinho” a uma aula para ir dar umas tacadas não era nada de tão excepcional quanto deveria ser, e nenhum muro nem nenhum portão de nenhuma escola ou liceu segurava a ganapada.

Um Porto de antanho, que desapareceu. Desapareceu boa parte da paisagem urbana desse tempo, desapareceram os eléctricos, desapareceram os “tróleis”, já ninguém sobe a pé o arco da ponte da Arábida e as escadas de ferro do “molhe” enferrujaram e partiram. À Torre dos Clérigos sobem os turistas… e já não há bandos de garotos pelas ruas: os poucos que sobram estão enfiados em salas de aula ou de ATL, agarrados a smartphones e a tablets, enviando furiosamente mensagens pelas redes sociais ou pelos tarifários de “sms gratuitos entre números da mesma rede”; são levados de carro da porta de casa à porta da escola, e de volta, sempre, sem apanhar chuva e sem correr nenhum risco. Só o de perderem o melhor da vida, que são as traquinices inconsequentes da meninagem.