Há um sentimento de intemporalidade que me acompanha sempre que parto, como se ao deixar a vida de todos os dias para trás, se libertasse um espaço em mim que volto a preencher a cada passo dado, com vivências seculares. Fragmentos de outras peregrinações que não as minhas. Como se um laço invisível que se foi tecendo aos longos dos tempos, ligasse até aos dias de hoje todos os que calcaram o mesmo chão e beberam das mesmas fontes, rumo ao mesmo destino.

Esta foi a quinta vez que percorri caminhos de Santiago. A confirmação das palavras do hospitaleiro que encontrei no primeiro albergue, da primeira vez. “Em breve estará de volta. O caminho vicia!” Ele tinha razão.

A liberdade que se sente ao deixar rotinas, horários e cenários conhecidos para trás é o começo de uma aventura, que a cada dia que passa se vai revelando muito mais do que apenas uma longa caminhada. Aos poucos, o estar em movimento constante, o esforço físico, a beleza da paisagem, as condições climatéricas, tudo à nossa volta nos faz regressar ao essencial e descartar tudo aquilo que é vazio. E quando se dá por isso os sentidos estão mais apurados e começamos a sentir que fazemos parte de um todo que vai muito além dos limites do nosso universo particular.

E depois as pessoas. As que encontramos aleatoriamente pelas aldeias, vilas e cidades que atravessamos e as que partilham o caminho connosco. Das primeiras já não se ouvem tantos “Bon camiño!”sinceros como ouvi da primeira vez. Sente-se uma certa indiferença. Talvez porque já não saibam distinguir os peregrinos dos turigrinos. Talvez porque o Caminho se tem banalizado e saturado nos últimos anos. Não sei ao certo porquê, mas algo se perdeu entretanto. Depois as segundas, as que seguem a mesma rota. Os “companheiros de missão” com quem nos cruzamos nos caminhos e nos albergues. Uma mescla de muitos rostos, línguas e culturas.

As histórias para contar já são muitas. Histórias de entreajuda, partilha e alegria, como a da peregrina alemã que não tinha dinheiro para pagar o albergue e que todos ajudaram com uma contribuição monetária para que pudesse ter onde ficar nessa noite. Ou então da cozinha cheia de peregrinos à volta da placa de fogão que ninguém conseguia por a funcionar, até que uma peregrina que tinha feito parte do caminho connosco se lembrou que eu cozinhava e me chamou para tentar “salvar” a situação, logo eu que sempre usei fogão a gás. A coisa até correu bem e lá consegui ligar a placa e aí foi uma festa, com todos a baterem palmas, numa sinfonia de obrigados em várias línguas. É por isto que para mim a passagem pelos albergues é uma parte incontornável da peregrinação. Bebe-se muito mundo, muita humanidade, em cada frase, sorriso ou experiência partilhados. E quando por fim nos voltamos a encontrar debaixo do tecto da catedral em Santiago, a assistir à missa do peregrino, debaixo da magia do perfume do incenso, que vai queimando no vai e vem do botafumeiro, dou comigo a pensar em tudo o que vivi desde a partida, a pensar que foi tanto e tão intenso e que depois de tamanha aventura é ali que por fim nos reunimos todos, em chão sagrado. E por instantes, rodeados pelas altas paredes de pedra secular, imbuídas de tantas preces e de tantas intenções, não importa de onde viemos ou porque razão viemos. Ali pertencemos a um todo, a algo que nos transcende.

Ali somos uma verdadeira irmandade.