Alto Douro Ignoto era um título, apenas um título. Na estante, com uma capa de aguarelas em que um desfiladeiro apontava para montes a perder de vista. Tinha eu 9 anos. Já lia, obviamente, mas o livro foi mais ouvido, da voz do meu pai, do que lido – da primeira vez, ao longo de umas férias, por vezes à luz de luas enormes, deitado na relva a olhar o infinito. Eram histórias de locais remotos, onde se dificilmente chegava, num Portugal de estradas sinuosas, de paralelepípedos e marcos brancos e vermelhos no limiar de barrancos insondáveis. O Douro só se alcançava verdadeiramente de comboio. E isso fizemos nós depois, a preparar a provavelmente mais íntima presença do grande rio nas nossas vidas – desce-lo de canoa, de Barca d’Alva a Bagaúste, em cinco inolvidáveis dias. Dormir nas margens, por entre as cepas, com um cheiro a uvas, a figos e a amêndoas, ao relento no calor benigno à noite. De dia, o forno do vale atingia mais de 45 graus centígrados, apenas aplacados pela proximidade permanente da água. Mais tarde ainda regressar, uma e outra vez, de automóvel e de comboio. Alto Douro, cada vez menos ignoto, cada vez mais traçado de estradas e de barcos de cruzeiro, cada vez mais na moda do turismo internacional – e, ainda assim, o livro de Sant’Anna Dionísio mantém todo o encanto a quem o ler.

O Douro hoje é outra coisa. As estradas melhoraram – muito; há barcos e mais barcos, pequenos e gigantescos (nem se percebe como tais hotéis flutuantes passam em certos pontos); há mais gente a visitar – e provavelmente muito menos gente a habitar; há quintas e mais quintas abandonadas (as casas) e novos vinhedos plantados de fresco; há menos socalcos, e há mais plantações mecanizáveis; ainda há mortórios, que recordam a calamidade da filoxera de meados do século XIX, monumentos funerários em que o labor do homem e a força da Natureza se misturam ainda e sempre; há as grandes companhias a anunciar a sua omnipresença em grandes cartazes que se mostram à distância; e há menos comboio…deixou de alcançar Barca d’Alva, quedando-se no Pocinho. A linha, admirável, foi abandonada e vai sendo consumida pelo tempo – uma barbaridade que só tem paralelo no abandono da linha do Tua. Essa, uma das linhas de comboio mais extraordinárias que se poderiam citar, em vez de ter sido cuidada e transformada numa atracção ombreando com Chur-Arosa, por exemplo, foi ignobilmente abandonada. Jaz em pedaços, desfazendo-se ao ritmo do tempo. Nem um percurso pedestre, nem uma ciclovia – nada, de nada. Como se Portugal, e o Alto Douro, se pudessem dar ao luxo de deitar ao caixote do lixo um dos seus tesouros mais preciosos. Falava-se até da interrupção do serviço do Pinhão para montante…aparentemente um disparate que ninguém ousou levar a cabo.

De facto, do Pinhão para nascente, o Douro continua inóspito…apesar das estradas, dos turistas, dos barcos, do comboio. É uma paisagem inigualável, de uma grandeza sem par, de uma beleza sem espelho – a não ser nas águas do rio, ora verdes ora d’ouro, quando arrasta o aluvião que lhe deu o nome. Ignoto, sempre – mesmo indo lá mil vezes. Mesmo lendo uma outra das suas escritas maiores, Agustina Bessa-Luís. Um Douro que merece que se lá vá, ao menos uma vez na vida. Uma vez só que seja.