‘— O tempo me quis verde e agonizante,
Ainda que cantasse acorrentado como o mar.’
(Dylan Thomas, Fern Hill)

Orfeu, um Trácio, nasceu de Calíope, mãe das musas, e Dioniso, deus do vinho, da diversão, da epifania e do frenesi ritualístico. Um homem incomum que desceu ao mundo da Morte para reaver seu amor perdido, Eurídice, deixando todos os desafios em suspenso com sua música – desde o cão de guarda de três cabeças Cérbero, que dormiu, ao barqueiro Caronte que se curvou e ao próprio Hades, que chorou. Em um tom lamentoso e sagrado que congelou os pássaros em seus galhos, ele persuadiu a intratável morte a reverter seu curso e devolver Eurídice ao mundo dos vivos.

Hades impôs uma condição: Orfeu não poderia olhar para trás ao guiá-la pelas sombras, em direção à luz, até que houvesse cruzado o limiar do mundo dos vivos. Mas, sendo apenas humano, olhou para trás cedo demais e viu seu amor – a um passo do sol – retroceder para a morte.

Ferido e desconsolado, Orfeu vagou por campos e montanhas, por fim indo buscar o oráculo de seu pai no monte Pangeu. Lá, reverenciou Dioniso ao nascer do sol e foi feito em pedaços pelas Ménades, mulheres devotadas ao deus – que acima de tudo veneravam a noite como mais sagrada do que o dia. Sua cabeça sem corpo foi presa a um galho de árvore antes de ser lançada em um rio, flutuando em sua lira, e cantando enquanto ia. Nada se mexeu, falou ou cantou até que chegasse ao oceano.

A história de Orfeu nos deixa com uma grande questão – como cantam aqueles sem corpo?

O culto aos mistérios órficos surgiu e ocupou a imaginação dos antigos gregos, do século VI a.C. ao século II a.C. Um punhado de tábuas douradas restou, inscritas com os hinos divinatórios de Orfeu. Inseridos nas tumbas dos mortos, seriam um roteiro para a morte e o renascimento, um tipo de cartografia para aqueles que acabaram de morrer, em seu caminho à reencarnação. Uma injunção fervorosa e recorrente gravada nessas tábuas ordena que a alma abstenha de beber a água do lago do esquecimento, e a beber do lago da memória.

O tom desse pedido recorda o modo como o Buda abria muitos de seus sermões, dizendo, “Oh, nobres de nascimento, lembrem-se de quem vocês realmente são.” De fato, esquece-se que o caminho de entrada e saída da vida é essencialmente cíclico, quer entendido pelo epitáfio órfico “Vida. Morte. Vida. Verdade,” quer pela noção sânscrita do samsara, o ‘fluxo contínuo’ de morte e renascimento ao qual está preso o mundo material.

É necessário ter visão para perceber a abundância de espiritualidade latente no mundo material à nossa volta, e uma mistura singular de compaixão, persistência e perícia em revelá-la. Essas são exatamente as qualidades que Tunga exerce em seu prodigioso corpo de esculturas estranhas. Essas obras mostram não apenas sua fluência na linguagem da forma e dos fonemas que conjugam a vida – o olho, a mão, a asa, o membro – mas também delineiam a unidade essencial de todas as coisas; do orgânico ao inorgânico e o poder alquímico do desejo de transformar o inanimado em animado e vice versa. Um cristal ou fio de pérolas posto em tensão delicada com estruturas de aros de ferro parecem aludir a um ponto fixo em um mundo que gira, onde a gênese de todas as formas se resolve em um globo de promessas exatas.

Em suas equações intuitivas e rigorosas, elas persuadem o espírito a entrar na matéria através de inúmeros remendos providenciais – remendos que evocam a mão da natureza na sinfonia infinitesimal do zunido da célula com os esforços cooperativos dos nucleotídeos. E, como a célula, a obra de Tunga, com toda sua abrangente simplicidade, explode em nanocomplexidade – as rimas sutis, e laços de vida e desejo.

Isso pode explicar por que, quando confrontados com sua obra, grande e original, não importa quantas vezes nos aproximemos dela, ela parece se expandir e expandir novamente diante de nós – repleta de possibilidades.

Em lugar nenhum de ‘From La Voie Humide’ há uma sombra de distanciamento. A vida se move em todas as coisas, o inorgânico tem arrepios de vitalidade, todos os materiais foram despertados de sua dormência espiritual – como almas guiadas pela permutação sombria das formas.

Como cantam aqueles sem corpo, e como pode sua canção nos transformar?

O poeta Rilke escreveu os versos a seguir sobre um antigo Torso de Apolo, que o havia provocado ao ponto da transformação pessoal,

Não sabemos como era a cabeça, que falta,
de pupilas amadurecidas. Porém
o torso arde ainda como um candelabro e tem,
só que meio apagada, a luz do olhar, que salta
e brilha. Se não fosse assim, a curva rara
do peito não deslumbraria, nem achar
caminho poderia um sorriso e baixar
da anca suave ao centro onde o sexo se alteara.
Não fosse assim, seria essa estátua uma mera
pedra, um desfigurado mármore, e nem já
resplandecera mais como pele de fera.
Seus limites não transporia desmedida
como uma estrela; pois ali ponto não há
que não te mire. Força é mudares de vida.

Tunga é um artista tão raro quanto o escultor desconhecido de Rilke, que percebe que transformar o mundo é transformar a si mesmo no processo; um conhecimento enraizado na crença de que todos os homens e mulheres buscam transformar a si próprios. Ele pertence à linhagem do autor desconhecido da trança, que trançava os cabelos à luz de uma fogueira há uns duzentos mil anos, no distante primeiro ato discernivel de harmonia humana; que fez três se tornar um. Aqui se encontra a dimensão ética da sabedoria do alquimista – uma figura tão frequentemente associada a Tunga – nada é sem.

Que amor é tudo que há,
É tudo que se sabe do Amor;
E basta: o peso deve ser
Proporcional ao sulco.
(Emily Dickinson, CXII)

Se há uma alquimia na vida, seu cadinho deve ser encontrado no coração humano. Somente ali é que todas as coisas podem se encontrar e se transformar. A sabedoria nos diz que somos nada e o amor nos diz que somos tudo, destilando a heterogeneidade do mundo em um ponto que engloba todas as coisas.

M. Wood, 2014