Em qualquer viagem, há livros e cadernos específicos que viajam sempre connosco. Talvez um dos melhores exemplos que guardo seja um poema da Sophia de Mello Breyner, que tenho sempre comigo:

(...) Este é o amor das palavras demoradas
Moradas habitadas
Nelas mora Em memória e demora
O nosso breve encontro com a vida.

Em cada breve regresso a Lisboa, tenho sentido estes versos cada vez mais próximos. Num regresso a casa, à estrada, às 'moradas habitadas' e ao breve encontro que é cada viagem, cada vida.

Lisboa é feita de gente, de luzes, de som, de tempo. E, por isso, cada cidade que para nós é casa será sempre uma morada que habitámos e que habitamos, nem que seja apenas por dentro.

Em cada um desses de que somos feitos, não podemos ficar indiferentes ao ritmo, à mudança e ao acelerar ou ausência de evolução.

Quando perguntam de onde sou e respondo de Lisboa, continuo a dizer com um sorriso que é a cidade mais bonita do mundo. Porém, talvez comece aos poucos a sentir uma cidade fragilizada, num sublime que sufoca, que fere tanta gente com falta de um lugar.

Ter casa, procurar casa, numa cidade que foi e que é tantas vezes morada para tanta gente. Dá que pensar, pelo menos a cada um de nós que feliz ou infelizmente teve que partir. É preciso continuar a acolher quem chega, a ser morada, independentemente do privilégio: cuidar de quem fica.

Lisboa tem uma identidade forte, continuamos a senti-la independentemente de tudo. Lisboa ainda é a cidade dos cafés, dos pequenos jardins, de Alfama, e da luz no rio ao fim do dia. Lisboa é da gente, de cada alma que passa e acima de tudo daqueles que param. Lisboa ainda tem sol e tem calma.

Que com o passar dos anos saibamos implementar políticas claras, concretas e adaptadas à mudança de quem fica e quem passa. Que saibamos que tantas outras cidades foram lugares turísticos, globalizados repletos de movimento e de fluxos que trazem cor.

Pela melancolia e tantas vezes quase revolta com que vivem tantos portugueses, no dia um de abril, milhares de pessoas participaram numa das maiores manifestações da crise da habitação que é vivida em Lisboa.

Ao contrário de outros protestos, o manifesto que a acompanhava tinha medidas e soluções concretas para apresentar à Assembleia.

Foi e continua a ser difícil ficar indiferente aos pedidos de regulação, ao controlo das rendas, ao reaproveitamento das casas vazias e à melhoria dos fundos de investimento. Há hoje um grito pela suspensão dos despejos e pela não-renovação dos contratos de arrendamento.

Vivemos em Lisboa uma gentrificação urgente da cidade, dos passes de transportes que ainda não são completamente eficazes nem acessíveis, e que fazem com que “As pessoas não tenham para onde ir”, frase referida por tanta gente. A gestão das periferias deve ser feita de forma mais coerente, com uma rede e jardins que a acompenhem.

Não podemos ser indiferentes a palavras destas, ao desejo de evolução, e à necessidade urgente de adaptação. Que não nos percamos no essencial e que não deixemos com isso morrer a identidade de uma cidade tão bonita.

Para tantos Lisboa de estrada, de 'moradas habitadas'. Para tantos os que caminham, Lisboa de abril, de cada dia de luz, de mar, de sol, de liberdade.

E Lisboa, cidade de vida, das esplanadas, das ruas pequeninas e das avenidas que dão para o rio. Que haja sempre lugar para os que desejam permanecer ou regressar. Que os lugares sejam moradas habitadas com alma de gente, de saudade, de fado.

Por fim, sobre os que estão longe mas sofrem de perto: de abril trazemos as flores, dos amigos, as saudades. Enquanto a poesia estiver na rua e a manhã for dos pássaros, acreditemos que Lisboa pode ser casa, mesmo que apenas em breves regressos e reencontros de que somos feitos.