Em tempos de inteligência artificial o sentimento fica ressabiado para compor a vida vivível. Talvez, seja necessário compreender nas relações sociais maneiras de doar, receber e contribuir. Para isso, precisamos aguçar a sensibilidade que atualmente está perdida e sem rumo. A vida, ultimamente encontra-se nos chats de reclamações nas redes sociais entre memes e fake news. Na real, a era do abandono, a era do descuido chegou! Como exemplo, encontramos no Recife, Pernambuco, uma paisagem do desperdício. Lixos nas calçadas, sacolas de todas as cores perambulando, sacos de biscoitos voando, copos descartáveis rolando, garrafas PETs sem direção, cocô de cachorros e cavalos, sujeiras, matagais, sapatos estragados entre melancias, tomates e pimentões sob um mosqueiro insistente entre outros desleixos. Coitado do escritor pernambucano Antônio Maria, que escreveu sobre a alma das ruas, e que tinha saudade do Recife com orgulho, ficasse depressivo e triste, com tamanho descaso. E o compositor pernambucano Capiba, que compôs o frevo – Recife, cidade lendária ficaria abalado com o Recife que não faz nem um gosto de se ver.

...Recife, cidade lendária
De pretas de engenho cheirando a banguê
Recife de velhos sobrados, compridos, escuros
Faz gosto se ver
Recife teus lindos jardins
Recebem a brisa que vem do alto mar
Recife teu céu tão bonito
Tem noites de lua pra gente cantar...

Há de se considerar, que somos seres simbólicos, antes de sermos econômicos e sociais. Digamos que temos potencialidades e nosso papel é dispor de diálogo. Seja com os animais, com a natureza e com as pessoas. Por isso, para compreender as convivialidades como diz o professor Sérgio Costa “a convivialidade abra-se a possibilidade de incorporar essa multiplicidade de formas sociais que queremos entender e, com perdão da redundância, conviver em absoluta liberdade com essas diferentes formas sociais.”1 Precisamos compreender que o mundo necessita da pedagogia da dádiva pelo paradigma da comunicação. As convivialidades apontam caminhos que podem trazer novamente o glamour nas relações sociais, bem como o glamour da ciência. Mas, há glamour na ciência? Podemos unir ciência e sentimentos? O que falta para que uma cidade volte a ser tema de poesias, e ser portentosa? O sentido de racionalidade nas relações intersubjetivas compreendem os espaços e justificativas na educação pelo paradigma da comunicação. Talvez, ainda não enxergamos, mas, seria a educação o bálsamo da vida?

Primeiramente devemos ter clareza do objeto de estudo da comunicação. É um objeto simples e amplo ao mesmo tempo, possui várias bifurcações, dimensões e visibilidade. Ou seja, são muitas variáveis vinculadas desde processos humanos e sociais, interpretações de sentidos, o simbólico, a linguagem onde é por muitas vezes confundido com cultura e opiniões. Desse modo, a transgressão social começa pela comunicação.

Ressaltamos que a pós-modernidade tem ecos sob o domínio da comunicação. Daí, devemos esclarecer que o nosso papel é dispor de diálogo e que o paradigma organiza as teorias na identificação de discursos e formas simbólicas. Pois bem, e qual é o lugar onde assumimos nossos papéis? É na comunidade. Na comunidade encontramos características da rivalidade sadia, uma comunicação do dia a dia entre os envolvidos e afetos.

Embora o simbólico seja a grande ponte do ser humano com mundo é a partir dele, que desenvolvemos investigações numa dinâmica entre o sentido de futuro e a vida vivível. Acolhedora e partilhada, a comunidade no cotidiano dos seres humanos em convivialidades é um lugar simbólico e/ou, geográfico que facilita a construção de objetivos comuns na revelação de ações que contagia os envolvidos na mudança social. Ambiente que evidencia escolhas e vontades cotidianas na reconstrução das relações sociais pelas condições ritualísticas. Zona de encontros de ideias e sentimentos em busca de novos futuros. Espaço de sonhos partilhados no cotidiano dos seres humanos.

A pedagogia da dádiva seria uma condição de doar, receber e retribuir entre o mundo e as pessoas o bem que o planeta Terra oferece. Aprender que minhas ações e realizações contribuem com o bem estar do planeta é compreender a união entre ciência e sentimentos. Há várias comunidades que desenvolvem potencial da pedagogia da dádiva. São comunidades que revelam suas realizações.

Como diz Z. Bauman que a comunidade é o aconchegante coletivo porque é conduzido pelos afetos, costumes e sentimentos. Entender que a técnica de conduzir uma criança ao mundo passa por um universo por um lugar frutífero que é a dádiva é trazer convivialidades na comunidade de aprendizagem. Então, o que mais sabemos fazer? Retribuir e contribuir são convivialidades. Se nosso papel é dispor de diálogo, não podemos viver socialmente sem a dádiva. A pedagogia da dádiva traz o presente sob o olhar no sentido de futuro. Desperta sensibilidade nas comunidades.

O pesquisador Alain Caillé diz que “A totalidade social não preexiste aos indivíduos como tampouco o inverso, pela simples razão que tanto uns como os outros, como a sua posição respectiva se geram incessantemente pelo conjunto das inter-relações e das interdependências que os ligam.” (Caillé, 2002ª, p.18) 2. Para salientar, quando começamos ao não fazer julgamentos morais, estamos na direção do amor, portanto da dádiva. Por isso, a dádiva é o caminho visível da arte de conviver em comunidade na valorização da relação de cooperação entre pessoas e grupos pela capacidade de imaginar, criar e ampliar a consciência em relação à finitude dos recursos com o cuidado do outro e com o mundo. Forma de solidariedade com responsabilidade diante da busca por realizações que inovem e incentivem a melhoria nas condições ritualísticas nas comunidades. Dinâmica da sabedoria dos seres humanos na compreensão do sentido de futuro para reatualização da cultura nas comunidades.

Assim, as comunidades de aprendizagem projeto desencadeado pelo professor José Pacheco da Escola da Ponte “são práxis comunitárias num modelo educacional gerador de desenvolvimento e que pode assumir a forma de rede social física ou virtual.”3 Pois bem é a partir dos sonhos que uma comunidade se reinventa. A professora Valquíria Viscaio da Escola Campos Salles no bairro de Heliópolis no Estado de São Paulo, ajuda a reinventar a referida comunidade. Ela diz que “para cuidar de uma criança é necessário uma aldeia inteira.”4 A Escola se mobiliza pela autonomia, responsabilidade e solidariedade. A partir de criação de roteiros e sem muros, num salão, as crianças estudam e aprendem. Articulada com a comunidade a criança é ouvida e cuidada. A avaliação é um processo diário. Há as Comissões de mediações para dialogar os conflitos, os comportamentos e ações das crianças sempre pelo lado positivo.

A Escola pública trabalha com os alunos na minimização da violência. Enxerga o aluno como cidadão e cidadã. Sempre em busca de problematizar situações de conflitos sob a ótica da autonomia, responsabilidade e solidariedade no pensamento do professor José Pacheco. Existe o projeto intitulado - Bairro Educador, onde todos são responsáveis, desde empresários, família, a comunidade também se desenvolve pela educação.5 Para tanto, o professor Paulo Henrique Martins afirma que “A ruptura da limitação da lógica fotográfica dos paradigmas tradicionais somente é alcançada quando se entende a dádiva como um dispositivo de reciprocidade, que envolve diferentes formas de organização das relações entre os seres humanos. No mundo do capital e do trabalho, mas, igualmente, no mundo da vida em geral: das comunidades, das tribos e também dos não humanos. A tese maussiana do fato social total, que sustenta o entendimento da dádiva como sistema dinâmico, constitui uma inflexão com relação ao pensamento de seu tio, Durkheim, que não conseguiu superar a dualidade entre o objetivo e o subjetivo (Caillé, 1998, p. 8). No sistema da dádiva, a vida social aparece como sistema flutuante no tempo, que pode ser observado pela circulação dos bens materiais e imateriais, fertilizados por um simbolismo geral que significa a realidade em cada momento e em cada lugar.” 6

Assim, na pedagogia da dádiva há, a superação do dualismo, o cotidiano se transforma num dispositivo ritualístico da realidade. Quando somos educados pela dádiva ocorre o glamour da ciência. O cientista que vai em busca de caminhos que apontem novas convivialidades, trabalha com compaixão e a comunidade se reinventa. Como o compositor “espinoziano”, Belchior dizia “Amar e mudar as coisas, amar e mudar as coisas me interessa mais...” E agradecendo aos poetas, como os versos do jornalista pernambucano Carlos Pena Filho, uma cidade se inventa,

...Hoje, serena, flutua,
Metade roubada ao mar,
Metade à imaginação,
Pois é do sonho dos homens
Que uma cidade se inventa

Referências

1 Convivialidade – caminhar em direção a outros conhecimentos, outros mundos
2 A dádiva e o terceiro paradigma nas ciências sociais: as contribuições antiutilitaristas de Alain Caillé por Paulo Henrique Martins
3 Aprender em Comunidade por José Pacheco
4 EMEF Campos Salles transforma currículo e valoriza a autonomia do estudante
5 Blog EMEF Pres. Campos Salles
6 A dádiva e o terceiro paradigma nas ciências sociais: as contribuições antiutilitaristas de Alain Caillé