«...deverá também recorrer-se, com diligência, à cal, devendo ser queimada a partir de pedra branca ou de tufo calcário, será útil nas estruturas, a que for de pedra sólida e mais dura, e nos revestimentos a que for de pedra porosa».

(Vitrúvio, in «Tratado de Arquitectura», p. 78)

A utilização da cal para fins construtivos é uma prática que se perde no tempo. Desde tempos imemoriais que a sua aplicação tem vindo a ser feita das mais variadas formas, como nos relata Vitrúvio no seu tratado de Arquitectura escrito no Século I a.C., texto seminal da cultura da Antiguidade Clássica e que se constitui, como nos relembra Paulo Varela Gomes na nota de apresentação à tradução portuguesa do Tratado, da responsabilidade de Justino Maciel, como a primeira palavra da arquitectura.

Esse conhecimento, do modo de produzir cal e de a aplicar, em si mesmo um património riquíssimo, que foi sendo transmitido ao longo dos séculos, permite perceber a existência de influências recíprocas entre grupos culturais muito diversos.

Desde a sua utilização como ligante das argamassas de assentamento das alvenarias de pedra na Roma antiga e nos inúmeros edifícios que se construíram por todo o império. À sua aplicação nos revestimentos exteriores, com técnicas decorativas que são verdadeiras obras de arte nas fachadas das nossas cidades.

Veja-se o exemplo dos esgrafitos em Barcelona, que escolhemos como paradigmático da beleza e qualidade técnica demonstrada. Ou os fingidos, que simulam revestimentos exteriores ou imitam o próprio aparelho construtivo. Das artes decorativas no interior dos edifícios, de que a pintura a fresco é um dos melhores exemplos, como técnica cujos resultados estavam directamente associados à cal, uma vez que era a sua carbonatação que permitia a fixação dos pigmentos ao reboco. Aos vestígios dos fornos tradicionais de produção de cal, em si mesmos, um património arquitectónico de indiscutível valor como memória de um modo de fazer e de viver que não passou há assim tanto tempo.

O reconhecimento da importância da cal no património edificado tem vindo a ser motivo de alguns debates e encontros científicos, também em Portugal. Como por exemplo o diálogo interdisciplinar que teve lugar em Évora, nos passados dias 19 e 20 de Outubro, no I Simpósio Ibérico A Cal na arte e no património edificado, organizado pelo Laboratório Hercules, pela Universidade de Évora e pelo LNEC, que promoveu o debate e a análise das várias dimensões em torno deste material, procurando resposta para os principais desafios que se colocam, hoje em dia, na preservação de uma herança cultural comum, a cal, sobretudo pelo conjunto de significados no património arquitectónico que nos foi legado. Ou o Fórum Ibérico da Cal (FICAL), cujas jornadas em 2016 se realizaram em Lisboa, nas instalações do Laboratório Nacional de Engenharia Civil e, no próximo ano, se irão realizar em Pamplona, nos dias 28 e 30 de Maio de 2018, com o denominador comum de conhecer as características, o comportamento, as novas possibilidades de obtenção e aplicação, bem como os aspectos inovadores e tecnológicos relacionados com a cal.

No entanto, por muito úteis que estes encontros sejam, e são, de facto, muito interessantes e úteis, como forma de partilha de conhecimento científico e prático, a sua maior virtude estará no facto de poderem extravasar os seus próprios limites, ou seja, se todo esse conhecimento técnico e científico se reflectir na arquitectura e no património actuais. Se a utilização da cal conseguir ultrapassar as barreiras de desconhecimento generalizado e desinteresse que as várias classes profissionais têm vindo a demonstrar desde que a cal perdeu o seu lugar privilegiado como ligante das argamassas para o cimento.

Para tal, será necessário educar, divulgar, promover workshops junto das comunidades, dos técnicos dos vários saberes, dos artífices, que ainda os há, dos construtores, dos promotores, para que faça parte do leque de soluções actuais. Sobretudo porque é nosso dever colocar a cal, nas suas múltiplas valências e aplicações, ao serviço dos desafios que a construção e a arquitectura enfrentam actualmente. Por outro lado, como refere o Engenheiro Victor Cóias, Director da Revista Pedra & Cal, no editorial do nº 61 da revista, do segundo semestre de 2016, dedicado precisamente à cal, as preocupações ambientais, que se agudizaram nas últimas décadas do século passado, contribuíram para o regresso à cal que, ao contrário do cimento, para ganhar resistência, precisa de ir buscar à atmosfera o dióxido de carbono que lançou no processo de fabrico.

Um regresso à cal que, como outros materiais ditos «tradicionais», não deve representar apenas um regresso ao passado ou a um passado, mas a consideração da necessidade de atender às condicionantes que mais perto influenciam a arquitectura, como referiu José Carlos Loureiro, onde se inclui evidentemente a cal, e encarar a honestidade da sua produção e aplicação como lição valiosa de como foi integrada no quadro geral dos condicionalismos físicos e humanos, e não como objectivo exclusivo de fazer reviver processos que estão há muito ultrapassados.