A criação de imagens pictóricas que emanam do real e dele retiram o seu sentido mais profundo, ocorre, muitas vezes, como pretexto de recriação e reflexão sobre a linguagem pictórica: é o que aqui acontece. As escadas não surgem representadas directamente, são lidas a partir da projecção das sombras de guardas e corrimãos e lançam-se no espaço evocando os degraus que as originam, mas ganhando a liberdade e as direcções mais imprevistas. Essa é, porventura, uma boa metáfora da pintura: encontrar uma razão que se vai impondo, para, logo depois, ser uma memória que a construção lenta das pinturas vai superando; desafiando-nos através de transparências, cores, harmonias e contrastes, interrogando-nos através dos limites cortantes de uma superfície ou a textura orgânica de um plano.

As escadas que estão na base destes trabalhos são as escadas da casa da minha infância, um desenho peculiar que me habituei a ver diariamente, e a que volto, agora, passados uns anos, para observar e considerar em diferentes tempos de representação.

Umas escadas surgiram no fecho da última exposição realizada na Galeria Alecrim 50, Uma presença silenciosa, em 2012, e são o ponto de partida para o trabalho que se apresenta em SCALA. A pintura implica um compromisso e uma entrega que envolve um tempo lento, gestos que se repetem e que evocam outros gestos, de autores que antes pensaram as mesmas questões, como acontece nas escadas labirínticas de Piranesi, que estipulam espaços de reclusão e deambulação existencial, nas construções impossíveis de Escher, nas escadas livres de Beuys e Louise Bourgeois, na escada de Dürer, na Melancolia I, ou, na arte do nosso tempo, nas escadas das obras de Anselm Kiefer.

O Nu descendo as escadas, de Duchamp e todas as releituras feitas por Richter, lembram a possibilidade de deslocação entre planos e uma certa ideia de duração (Bergson). Essa é uma questão retomada nestes trabalhos, através de soluções compositivas que jogam com pequenas variações temporais das sombras, sobreposições e arrastamentos. Arrastamentos que adquirem um duplo sentido: o da acção de pintar, mas também o do efeito de arrastamento do tempo que a pintura evoca, e que, curiosamente, a fotografia evidenciou nas obras pioneiras de Muybridge, Étienne-Jules Marey e Bragaglia.

Domingos Rego
Azeitão, 12/4/2015

Domingos Rego

Nasceu em Castelo Branco, em 1965. Vive e trabalha em Azeitão e Lisboa.

Curso de Arquitectura de Interiores e Mobiliário da Escola Superior de Artes Decorativas da Fundação Ricardo Espírito Santo Silva (1987). Licenciado em Artes Plásticas – Pintura (1994), pela FBAUL, concluiu, na mesma Faculdade, o Mestrado em Pintura (2006) e o Doutoramento em Belas-Artes / Desenho (2013).

Exerce funções de docência e coordenação na área do desenho na Escola Superior de Artes Decorativas da Fundação Ricardo Espírito Santo Silva, de 1994 a 2002.

Entre 2002 e 2005 é Assistente Convidado, na FBAUL, nas cadeiras de Introdução às Artes Plásticas e ao Design, e Pintura I. A partir de 2006 assume funções de Assistente, nas cadeiras de Desenho I e Desenho II. A partir de 2013, torna-se Professor Auxiliar, na mesma Faculdade, participando como investigador no CIEBA, Centro de Investigação em Belas-Artes.