O texto abaixo não é propriamente uma entrevista, e também não é um ensaio. Quando fui convidado a escrever sobre a obra de Lydia Okumura, pensei que entrevistá-la poderia ser o caminho mais interessante, considerando que ela reside em Nova York há muitos anos, e sua voz não tem sido ouvida com tanta frequência por aqui. Além disso, os textos escritos sobre seu trabalho abordam principalmente o período brasileiro, a produção conceitual dos primeiros anos e a experiência seminal, mas relativamente rápida, com a Equipe3, sem aprofundar a produção posterior. Sugeri então a Lydia uma entrevista, e ela concordou, mas quando recebi o arquivo com as respostas às minha primeiras perguntas, recém-chegado por e-mail da Nova York presumivelmente gelada dos últimos dias de 2016, me deparei com um texto livre e pessoal, que no fundo deixava claro que uma entrevista “convencional” não conseguiria dar conta de tudo que se tem para dizer a respeito do seu trabalho. Da mesma forma como a obra de Lydia Okumura se mantém, até hoje, experimental e pouco classificável, esse texto ficou, então, num estado híbrido, buscando manter o tom da fala da artista e a leveza de seu pensamento. Mais do que como perguntas e respostas, os parágrafos abaixo devem ser entendidos como frases de uma conversa livre e horizontal, mais coerente, nesse sentido, com o tipo de parcerias que ela criou em suas obras colaborativas dos anos 70.

Pela maneira como lidam com um espaço ao mesmo tempo tangível e hipotético (ou utópico), as instalações realizadas por Lydia Okumura no começo dos anos 1970, e os desenhos preparatórios para esses projetos, poderiam ser colocados em relação com obras icônicas da arte brasileira (e mais especificamente carioca) da segunda metade do século XX, como a série Cantos de Cildo Meireles (1967-68), Do it Yourself: Freedom Territory (1968), de Antonio Dias, ou ainda algumas obras em papel de Carlos Zilio dos mesmos anos. Por outro lado, sua obra, tanto a produzida individualmente quanto a criada como parte do coletivo Equipe3 (com Genilson Soares e Francisco Iñarra), é lida principalmente a partir do âmbito da produção de São Paulo, e mais especificamente na órbita do MAC-USP, então sob a direção de Walter Zanini..

Devo confessar que nada sabia do Rio, e até São Paulo já é um mundo desconhecido. Anos atrás vi obras de Antonio Dias em São Paulo, obras em papel artesanal da Índia, com o símbolo + vazado no canto superior esquerdo, e outras formas derivadas. Acabo de ver a imagem de uma instalação com os mesmos símbolos +, porém impressos sobre o piso, o que me lembrou a minha própria obra “1.000.000 mm3”, na Bienal Nacional de SP, em 1972, quando imprimi frases sobre o piso e percorri com barbante o 2º andar do prédio [a obra de Antonio Dias citada por Lydia é exatamente Do it Yourself: Freedom Territory]. Nos anos 60 havia um grande abismo entre o Rio e São Paulo. Eu ouvia anedotas: que no Rio de Janeiro os críticos só escreviam sobre Lygia Clark e Hélio Oiticica, por exemplo. Talvez em resposta a isso os artistas, em São Paulo, se reuniam na Praça da República, onde trocavam notícias sobre vernissages, salões, etc. Essa escassez de informação talvez tenha me dado liberdade para desenvolver a minha própria forma de expressão após minha primeira exposição individual, em 1968. Eu conhecia o Prof. Zanini superficialmente quando participei da JAC em 1971 [Jovem Arte Contemporânea, exposição anual organizada pelo MAC-USP], mas lembro que em 1972, em sua primeira aula de História da Arte na FAAP, ele perguntou à classe quem de nós pensava em ser artista, e eu fui a única a levantar a mão! Depois de alguns dias, recebi um convite para participar do evento “9º Aniversário” do MAC, que aconteceria daí a 2 dias! Então produzi a frase: “Faça alguma coisa antes do término do 3285º dia”, que imprimi em off-set, em papel branco, dobrado em triângulo, feito um guardanapo, e distribui ao público durante a noite do evento, e essa ação foi posteriormente mencionada com destaque, no impresso comemorativo do Museu.

A instalação, intitulada Pontos de vista, pode ser considerada um dos pontos altos da trajetória da Equipe3, exatamente porque nela os três artistas conseguiram manter as poéticas individuais na produção de seus trabalhos, mas também produzir os uns em direta resposta ao que os outros faziam. A decisão de mostrar um registro fotográfico do processo ao lado da instalação evidencia a importância que eles atribuíam ao modus operandi adotado. De certa maneira, criaram assim uma obra ao mesmo tempo coletiva e individual, algo já ensaiado na obra realizada para o JAC de 1972, Incluir os excluídos, para a qual produziram, com a colaboração de vários amigos artistas além dos três integrantes do coletivo, as obras de artistas (Jannis Kounellis, Jacques Castex, Daniel Buren, Érika Steinberg, Sérvulo Esmeraldo e Arthur Luiz Piza) que haviam se inscrito, mas não foram contemplados na lista final de participantes por não estarem fisicamente presentes no dia do sorteio dos espaços. Mesmo que a questão política não fosse abordada diretamente, cabe lembrar que essas obras foram produzidas num contexto fortemente marcado pela ditadura (as Bienais desses anos são caracterizadas por um amplo boicote de artistas internacionais em resposta ao clima de repressão no Brasil), onde propor novos “pontos de vista” e trabalhar para “incluir os excluídos” são gestos afirmativos e explícitos. Em 1974, pouco tempo após a Bienal, Lydia se muda para Nova York, com um visto de estudante no Pratt Graphic Center, e apesar de algumas exposições conjuntas posteriores, a aventura da Equipe3 se interrompe.

Em 1974, em Nova York, sendo estudante no Pratt Graphics Center, usei técnicas bidimensionais e imprimi imagens “multi-dimensionais”, ou instalações em situações complexas. Tive oportunidade de fazer instalações em instituições, galerias e residências, mas enquanto sobrevivia e arrumava o loft onde vivia, produzi também muitas obras em papel, principalmente projetos para possíveis instalações em espaços vazios, que podiam também funcionar como parte das mesmas instalações, quando expostas em conjunto. Em Nova York, nesses anos, tive a oportunidade de participar de várias exposições coletivas, e sempre achei fantástico que os críticos escrevessem sem conhecer pessoalmente o artista; não importava a nacionalidade ou procedência do artista.

À primeira vista, não deixa de ser surpreendente que a produção de Lydia se torne, em Nova York (isto é, no lugar onde nascera alguns anos antes a arte conceitual), mais física, aprofundando a experimentação com o espaço arquitetônico e suas particularidades, e o desenvolvimento de formas bidimensionais no espaço. Caminhos, isto é, que ela já tinha começado a trilhar em sua produção anterior, mas que agora se tornam predominantes. O uso de fios esticados, que já aparecera em Pontos de vista, é agora recorrente, assim como o uso de espaços arquitetônicos complexos, como cantos, saliências ou nichos. No berço da arte conceitual, a obra de Lydia se revela, no fundo, mais próxima do minimalismo, e do trabalho de artistas como Sol Lewitt ou Fred Sandback.

Em 1974, em Nova York, fiz a foto de um canto onde havia esticado um barbante preso com push-pins, da aresta do canto da parede, descendo 3 linhas até o piso e criando a ilusão de uma pirâmide. O piso era de madeira, num loft na Broadway onde morei durante 6 meses. No ano seguinte, em Caracas, também fiz duas peças usando cordas, e no mesmo ano criei uma maquete de foam-board, e fui esticando linhas de fio preto elástico de parede a parede, e fotografando em seguida, aproveitando a elasticidade da linha solta no ar e criando sombra, ou rente a parede, até formar a ilusão de um cubo completo. Em 1976, numa exposição na Universidades de Indiana, improvisei um cubo num pequeno canto usando apenas barbantes; em 1979 usei uma corda para fazer uma linha/sombra num canto na Nobe Gallery. Depois em Tokyo, na Galeria Ginzakaigakan, estiquei um barbante a uma distância de aproximadamente 25 cm das paredes, para projetar sombra nas quatro paredes da galeria. Em 1980 fiz algo parecido no Pratt Institute de Nova York, e em 1981 no PS1; em 1983 na Bienal de São Paulo e no ano seguinte no MAM…. Tudo isso, para tentar lembrar exatamente quando vi a obra de Fred Sandback pela primeira vez, mas não sei ao certo. Pode ter sido no final dos anos 1970, ou até nos ‘80, mas na verdade devo ter visto a sua obra no máximo 3 ou 4 vezes. Eu quase não rodava galerias pelo jeito… O Pratt Graphics Center era um foco de artistas de várias nacionalidades: Malásia, México, Japão, Canadá e EUA. A bolsa era em troca de um dia de serviço por semana, ajudando no escritório, processando correspondências e levando ao correio, por exemplo. Lá conheci Ryo Watanabe, que morava no mesmo prédio do Sol Lewitt, e outros artistas japoneses que começaram a produzir as obras de Sol. Em 1976 tive a oportunidade de trabalhar para ele, na execução de um desenho de parede, no saguão da School of Visual Arts, no Chelsea. A parede já estava preta e quadriculada com grafite, o meu papel era riscar linhas retas, em alguns casos contínuas e em outros quebradas, com giz branco, usando régua e compasso. Havia um canto no alto de uma escada, onde eu não conseguia alcançar, me faltavam uns 20cm, daí Sol subiu na escada e completou a linha em 2 segundos. Quando Sol me perguntou o que eu fazia, e onde morava, eu disse que eu também era artista, que morava perto da Franklin Furnace, e comentei algo sobre a geração de artistas como ele que influenciavam a nova geração. Para a minha surpresa, ele tocou a minha campainha um dia, e viu a minhas obras de papel, algumas ainda em produção. No final dos 80, quando o sistema de arte se transformava, eu sofri também grande transformação em minha vida. Tive que enfrentar a gentrificação do bairro Tribeca, perdi o loft onde vivia, tive que arranjar trabalho integral para o meu sustento, separei moradia e atelier, produzindo à noite e aos fins de semana. Sem contato com as instituições, eu mergulhei no mundo do dialogo intimo com a minha própria pintura, o que não tive oportunidade de fazer na juventude, e se revelou uma prática meditativa necessária. Diferentemente de instalações, em que dependia das instituições, a pintura depende totalmente da intenção e estado físico, refletindo todas as condições, e é como um espelho da alma.

Em ocasião de uma de suas maiores exposições, no MAM de São Paulo, em 1984, Lydia produziu uma grande quantidade de obras novas, seguindo na experimentação com formas geométricas e materiais diversos, mas o que mais a marcou nessa oportunidade foi a experiência de ver a exposição através dos olhos de um grupo de crianças que ela havia visto trabalhar no parque como “flanelinhas”.

Ao observar os meninos descalços que deixei entrar no museu, eu entendi que faço arte para as pessoas verem, simples assim. Acredito que o observador passa a perceber a sua própria presença, ao refletir sobre si mesmo. O minimal, o geométrico, o ambiental, são estratégias. O artista determina a sua maneira de expressão, e busca a forma de melhor expressar cada ideia. Acho que a arte conceitual surgiu da apatia do apenas decorativo, do falso, e da repulsa aos valores que necessitavam ser posicionados. Uma ideia, uma verdade, um conhecimento, gera uma sentença; a energia exige uma forma de expressão e forma uma linguagem. Hoje, o mundo já se interpreta através da energia quântica, mas o que mudou foi a percepção, da verdade que Buddha já explicava há 3000 anos, e dizia que esse mundo físico é uma ilusão, que não existe, é temporário. O artista pode ajudar na observação do interior além do físico, do psicológico, do pensamento. A obra de arte permite uma pausa necessária para essa (auto-)reflexão. A geometria é um desenho inteligente, que pode ajudar a expressar o conceito de multi-dimensionalidade, um aspecto da verdade da vida.