Passados mais de 25 anos desde a morte de Mira Schendel, cada nova exposição da artista é capaz de nos surpreender com trabalhos pouco conhecidos ou que nunca foram expostos anteriormente. No cenário da arte do pós-guerra, são raros os artistas que, como ela, produziram uma obra que não somente mantém a potência ao longo dos anos, mas que ainda provoca a sensação de frescor e novidade depois de tanto tempo. E por mais que se tente enquadrar sua produção dentro de um movimento de época ou estilo específico, a mesma escapa de toda e qualquer denominação fixa. A visão da totalidade da obra de Mira, cujo conjunto estamos longe de conceber por completo, é ampliado constantemente por novas descobertas que revelam uma fecunda diversidade de séries e famílias de trabalhos, colocando em xeque interpretações muito rígidas.

Mira, provavelmente, trabalhava de modo incessante e sua curiosidade e ímpeto de experimentação a levavam a incorporar sempre novos materiais e práticas a seu fazer artístico. É essa a primeira impressão que surge quando contemplamos o grupo de obras aqui reunidas. Ao lado das séries mais conhecidas, como as Monotipias, desenhos a óleo sobre o finíssimo papel de arroz, os Toquinhos, com letras e colagens de recortes tingidos de papel e as pinturas em têmpera e folha de ouro da fase final de sua vida, encontramos o desenho a guache (Sem título, 1954) que remete às fachadas assimétricas de suas pinturas dos anos 1950, mas que também possibilita antever elementos constitutivos destas outras séries mais conhecidas. Apesar de ser um trabalho da fase inicial de sua trajetória, datando do ano em que Mira muda-se para São Paulo e realiza sua primeira exposição individual no Museu de Arte Moderna, este pequeno desenho já aponta a sua preferência por uma geometria irregular em composições assimétricas, onde há o interesse em equilibrar luminosidade e transparência com campos opacos de cor. Revela, ainda, a natureza orgânica de sua linha, ao mesmo tempo delicada e incisiva, e que surge de maneira espontânea na superfície do papel.

No caso de outro grupo de trabalhos pouco estudados de Mira, os Bordados do início dos anos 1960, é possível testemunhar seu empenho em explorar o caráter expansivo da tinta (ecoline) e sua impregnação no papel artesanal, onde tramas incorporam manchas formadas pela imprevisibilidade da matéria. Nesses delicados desenhos, igualmente vemos se formar um universo pictogramático que se fará presente em quase toda a sua obra posterior (e ao qual pouco depois se juntam letras e números), numa clara lembrança de sua admiração pelo artista uruguaio Joaquín Torres Garcia.

No divertido “Diário de Londres” (1966), no qual Mira utiliza, ao que parece, pela primeira vez, as letras decalcadas (letraset), e no desenho Bar Tangará (1964), testemunhamos o lado espirituoso e bem-humorado da artista que, posteriormente, iria reaparecer com força nos raros desenhos em tinta spray dos anos 1970, em tons vivos e brilhantes, e na colorida série dos Toquinhos, na qual brinca com a criação de uma linguagem particular em que as letras são associadas a cores. De alguma maneira, sua joie de vivrea aproxima da leveza infantil, mas nada superficial, de artistas como Paul Klee, Matisse e Volpi.

No fundo, percebe-se que em seu trabalho nada era fixo: o fazer da arte se constituía para Mira, acima de tudo, como uma experiência vivencial e, por isso, em mutação. Em uma das únicas declarações sobre sua atividade, ela disse que buscava eternizar por meio dos “símbolos” (que eram suas tramas, cores, letras, formas e gestos) o dinamismo da vida. Estudiosa da fenomenologia, entre outras correntes filosóficas ocidentais e orientais, ela sabia, por outro lado, que, como tal essa mesma experiência não escapava ao constante equilíbrio de forças em tensão. Neste sentido, acredito que, hoje, não podemos mais avaliar a qualidade de sua obra sem levar em consideração esses desdobramentos pouco ortodoxos, que dão prova da polivalência e vigor de sua realização.