«A arte é o exercício experimental da liberdade»

(Mário Pedroso)

Para que serve a arte? É uma questão que aparece, algumas vezes, nos meios académicos, culturais e mesmo nos meios artísticos. A artista e crítica brasileira Katia Canton disse que a arte “provoca, instiga e estimula nossos sentidos, descondicionando-os, isto é, retirando-os de uma ordem preestabelecida e sugerindo ampliadas possibilidades de viver e de se organizar no mundo.” Uma das suas obras mais instigantes leva-nos a entrar no universo da arte contemporânea através dos temas suscitados pela própria contemporaneidade e que a arte, segundo a autora, espelha. As questões do corpo, do território, da memória e do tempo são tratadas, pela arte contemporânea, não de forma linear ou teleológica, mas através de idas e vindas, de desvios e fragmentos, ou seja, através daquilo a que Canton chama de narrativas enviesadas:

“No lugar do começo-meio-fim tradicional, elas se compõem a partir de tempos fragmentados, sobreposições, repetições, deslocamentos. Elas narram, porém, não necessariamente resolvem as próprias tramas.”

O crítico de arte francês, Nicolas Bourriaud, disse que a arte contemporânea é um outro modo de habitar velhos territórios. Portanto a questão do território, e da territorialização do espaço e da própria arte, é um tema constante na produção crítica, teórica e prática daqueles que fazem e discutem as artes na contemporaneidade. Um território é um espaço simbólico, com traçados e fronteiras, que propõe uma identidade que a ele se associa e, como tal, cria memórias e habitantes que se (re) conhecem e que partilham imagens comuns.

Esta exposição é composta pela obra de 4 artistas distintos, Tatiana de Almeida, Bruno Grilo, Ana Rostron e Gonçalo Rodrigues que frequentaram a licenciatura de Artes Visuais da Universidade do Algarve e que comungam, além desta memória escolar, o espírito libertário da experimentação artística. As suas práxis são processos e, no caso específico desta mostra, meta-processos que refletem sobre a decomposição, e a composição, dos materiais e a territorialidade, quer dos objetos que compõem, quer da própria arte que ocupa espaços outros, ou que se torna outra, a habitar velhos espaços.

A obra de Tatiana de Almeida é fruto de um trabalho continuado, e experimental, da artista, que começa por usar a carne, uma matéria orgânica, como suporte para a criação de formas orgânicas, bem como o látex, cuja flexibilidade corresponde à textura da carnação humana. Seu trabalho pode funcionar como uma afirmação sobre o estado da arte contemporânea: a sua efemeridade e o seu inacabamento, pois a obra está em processo e não finda, nela mesma, a sua narrativa, apenas engendra novos significados e põe em causa a nossa relação com os elementos que a compõem: cheiros, texturas e mutações. Também de mutações, ou de alterações de estado, fala-nos a obra de Ana Rostron que leva o seu trabalho noutra direção, a dos objetos-ruína, daqueles que são deixados, que já nada significam ou que não possuem mais utilidade sendo reconfigurados pela artista num objeto outro, sem, no entanto, perder a rudeza, a rugosidade e assumir, como parte do processo, a mutabilidade dos materiais que se transformam com a pátina do tempo.

Gonçalo Rodrigues, de alguma maneira, funde os dois processos – da utilização de matéria orgânica e de objetos ou materiais com os quais tropeça no seu quotidiano, ressaltando assim a relação entre o humano e o natural, entre o que fazemos e o que nos constitui a todos, a nossa origem simbólica e primeva – a terra. A obra de Bruno Grilo é mais limpa, e não há, nos seus desenhos, marcas visíveis do território ele mesmo, mas há uma proposição de criar novas arquiteturas, novos territórios sem fronteiras claras e sem preocupações em espelhar o real.

4 artistas, 4 projetos, uma preocupação: experimentar sempre para que a arte se configure no território onde tudo pode acontecer e onde o irrealizável é apenas um projeto que ainda não veio à luz.