Milk (1984), de Jeff Wall , é uma das mais intrigantes imagens da história da fotografia contemporânea, e uma (inesperada) porta de acesso ao mais recente conjunto de trabalhos de Letícia Ramos, em exposição na Galeria Filomena Soares. Na imagem, um homem sentado no chão, com expressão e corpo tensos, projeta no ar o conteúdo de um pacote de leite, que produz uma forma natural com imprevisíveis contornos - a “expressão de infinitesimais metamorfoses”, como descreve o artista.

Abrindo mão da complexa carga psicológica e social que frequentemente é associada a esta imagem (e ao seu trabalho de um modo geral), Milk é o ponto de partida para um importante ensaio de Wall - Photography and Liquid Inteligence (1989), em que discorre sobre o que seria a “inteligência líquida da fotografia”, em contraponto ao que denomina de “mecânico” ou “seco”. Se a “inteligência líquida” se relaciona a uma sugestiva genealogia dos processos de produção química - lavagem, branqueamento, enxágue, dissolução –, procedentes de uma memória perdida da produção de imagens; por seu turno, a “inteligência mecânica” seria toda a “balística” resultante da abertura e fechamento maquínico do obturador. Aquilo que no primeiro caso corresponde a um carácter experimental e errático da imagem - em que o sonho de parar o movimento da luz na chapa ainda não era considerado (a não ser de uma maneira fantasiosa), no segundo caso codifica os gestos de captação, preservação e disseminação da imagem, fundadores da visão “moderna” da fotografia.

O trabalho de Letícia Ramos situa-se nesse compasso raro da história, entre a nostalgia dos “primórdios” e o cinismo “balístico” moderno (para usar a expressão de Wall), abrindo para um campo de incerteza filosófica (“não sabemos ao certo se estamos no futuro do passado ou no passado do futuro” , como refere) sobre aquilo que nos apresentam como documento “puro” e inquestionável.

Com um percurso sólido no meio artístico, e exposições e prémios de destaque como o Bes-Photo (2014) ou a Bolsa Instituto Moreira Salles (2017), Letícia Ramos continua interessada em desvelar o lado poético e ficcional presente em muitas das realizações “científicas”, seja através da criação de aparatos fotográficos próprios para a captação de imagens e reconstrução do movimento, seja pela pesquisa criativa e experimental em suportes tradicionalmente “obsoletos”, como é o caso das película de microfilme e outros. Como a artista refere, “me agrada explorar possibilidades técnicas pré-existentes, utilizadas para fins não artísticos, e o quanto podem enriquecer a experimentação”. Desta forma, o corpo de trabalho de Letícia Ramos é uma via de compreensão dos caminhos bifurcados da história da fotografia, que restitui (e tensiona) o aspecto “fusional” da imagem, entre acaso e rigor. E envereda por um caminho singular, percorrido também por alguns artistas, que explora uma ordem afetiva, estética ou “líquida” (para retomar os termos de Wall) no mai mecânico e controlado ato de produzir uma “realidade”.

Na sua primeira mostra individual em Lisboa, Letícia Ramos traz-nos um título que nos é particularmente familiar: A Grande Onda. Muitos lembrarão de um Verão nos finais da década de 90, em que os rumores de uma falsa onda gigante lançaram o pânico no Algarve, provocando a debandada de milhares de banhistas das praias. O “fenómeno”, identificado como uma “massa escura” no horizonte, era o resultado de um efeito óptico associado ao calor, mas que não impediu a população, o corpo de bombeiros, a proteção civil e os meios de comunicação etc, de noticiar o evento como “verdadeiro”. Para quem acompanha o trabalho de Letícia Ramos sabe que o seu interesse por este tipo de “ocorrências” é recorrente, e tem conduzido a artista a paisagens ermas, como quando realizou uma viagem de circum-navegação no Circulo Polar Ártico, ou a relatos “histórico-místicos” de terremotos, entre eles a catástrofe de 1755 (Historia Universal de los Terremotos, Fundación Botín, 2017).

À semelhança de outras exposições da artista, que articulam de forma indistinta rumores e fatos científicos, também A Grande Onda explora procedimentos de montagem que nos fazem oscilar entre uma atmosfera nostálgica e algo “espectaculoso” próximo dos “efeitos especiais de uma bomba de fumaça!” Coabitam aqui estudos formais sobre a materialidade fotográfica e sobre a construção da imagem, sem qualquer tipo de aparato cenográfico (“o meu objetivo é menos a cenografia e mais a superfície do papel fotográfico”) - Carta Branca, Bicho Branco, ou Superfície I e II; e trabalhos que cristalizam momentos de excepcionalidade, onde os fenómenos se transformam em objetos de grande poesia - Light Photogram, Fata Morgana. As fronteiras entre os trabalhos não são, contudo, evidentes, e isso é qualitativamente explorado na indeterminação que sentimos ao ver esta exposição. Fata Morgana, aliás, é um trabalho que condensa esta aparente dicotomia, e “fala” por toda a exposição. Ao mesmo tempo que se refere à feiticeira (“Fada Morgana”) meia-irmã do Rei Artur que, segundo a lenda, tinha o poder de mudar de aparência, trata-se também de uma ilusão óptica, produzida no estúdio de Letícia Ramos. O hiato que à primeira vista parece existir entre estes dois conjuntos de trabalhos é, na verdade, um “statement” em defesa da contínua capacidade imaginarmos, mesmo a partir do mais “simples” desenho da luz sobre o papel. O facto de não usar nenhum tipo de câmaras ou de produzir impressões únicas, como as que estão aqui presentes, reforça um campo especulativo que contraria a “mecânica” da fotografia moderna, a sua construção e a sua reprodutibilidade.

Voltando ao texto Photography and Liquid Inteligence, depreende-se que o resgate que Jeff Wall faz do “líquido” é também uma crítica ao estatuto comprobatório da imagem fotográfica e à nossa ideia de história. É sobre esta argumentação que Letícia Ramos opera, especialmente num tempo em que a realidade (o “evento” nos termos de Benjamin), é totalmente orientado para a transmissão massiva. Não sendo mais necessário olharmos para o mundo porque a câmara fá-lo por nós, A Grande Onda reaproxima-nos do tempo histórico através da caesura (ou “interrupção”). De que forma? Criando um efeito de “proximidade” que nos recoloca diante das coisas do mundo como se fosse a primeira vez. Os acontecimentos de A Grande Onda são reais? Sim e não, mas isso não importa uma vez que condição de ambiguidade, na escala da realidade, é uma verdade para toda a fotografia - a “líquida-mecânica” ontologia.