Manter os olhos fechados por instantes, como se respirassem em atmosfera rarefeita, renova sua fala não verbal. O gesto é requerido para travar contato com imagens provenientes da experiência com o contemporâneo, uma vez que o agora completa-se com ideias e imagens que surgem no momento em que há bloqueio do campo de visão circunstancial. Daí cochilar para espantar hipnoses que chegam de assolapo, que se instalam à revelia do que importa à vida. Outra maneira de fechar os olhos é o piscar, que funciona como convite incessante à manutenção do estado contemplativo, além de garantir a lubrificação das córneas ao longo do estado de vigília. O automatismo que interrompe a visão pode aproximar imagens visíveis, intercaladas entre um gesto e outro das pálpebras, com cenas preservadas por tempo imemorável.

A montagem de Viver em um mundo abstrato reúne um corpo de obras que corresponde ao ato de fechar os olhos para reintegrar partes soltas do corpo e de memórias, como um rito de ecdise ao revés. Cabeças com os olhos fechados e sinos que ecoam vibrações sonoras inaudíveis, braços desintegrados que exercitam afagos e tentam segurar o que há de inestimável no mundo, são pedaços de corpos em metal que apresentam o percurso vagueante, de distanciamento e aproximação, que a obra de Albano Afonso sugere como meio de acesso ao abstrato contido na potência de base dez. Apenas o limite da percepção sensorial define o abstrato como imagem ininteligível. Tão perto quanto longe, o acréscimo de expoentes negativos e positivos indica a perda de definição do que parecia precisamente delineado no mundo. Viver o mundo abstrato, povoado por figurações, instantes e pulsações, ocorre com a percepção potencializada tanto em direção ao infinito quanto ao infinitesimal. Neste contexto, respirar e piscar funcionam com o mesmo propósito: trata-se de buscar partes de corpos perdidas no decorrer dos anos, recuperá-las para dentro do corpo-memória. Ao interrogar a quantidade de corpos que obtivemos ao longo de uma vida, olhar detidamente para cabeças, braços e mãos sobre os quais assumimos propriedade temporária, assim como para as veias que se multiplicam e permitem o pulsar do corpo, abstrações ganham forma e tornam a experiência do eterno, que atravessa a obra do artista, uma manifestação que desacelera estímulos e permite a troca de pele sem a experiência do amargor e da angústia.

Com paisagens silenciosas, marcas invariáveis da passagem do tempo, o artista chega a um exercício de grande simplicidade, que consiste em sobrepor cores primárias, capazes de criar um campo infinito de variações cromáticas. O resultado, no entanto, contraria a multiplicidade em questão, com uma pintura planar que pretende, antes, a síntese da experiência do contato de matrizes. Como se as cores primárias, ao gerar muitas outras, pudessem, também, anulá-las de maneira a criar um corpo que serve apenas à preservação de suas próprias forças. A montagem também é marcada por um conjunto de naturezas-mortas que funcionam como espelhos refletores de desejos. A natureza-morta que convive com sinos sem badalos, braços soltos e linhas dispostas a medir o infinito perpassa colagens de cenas e objetos encontrados em diferentes partes do mundo, de maneira a considerar a abstração que o qualifica contida em pequenos gestos, fusões de coisas quase invisíveis ao olhar apressado, assim como entidades que perseguem o artista enquanto se desloca por mundos que constituem sua singularidade. De acordo com a ideia de que os olhos fechados promovem o encontro de imagens que marcam o contemporâneo, vale considerar as horas para a produção da série de autorretratos como parte do processo das naturezas-mortas, entendendo-as como a ferramenta para a construção de monumentos do instante.

Um dia na vida é imagem crepuscular, reúne esperança e utopia. Na canção A day in the life, moto-contínuo que emprestou seu título à imagem, lê-se: “I read the news today, oh boy.” A interjeição da frase em inglês leva a cerrar os olhos por um instante. Interrompa a leitura e aproveite para lubrificar suas córneas. Depois disso, considere alguma ação, por singela que seja, que facilite o acolhimento da alteridade no mundo em que vive. Cerre os olhos para celebrar e encarnar anônimos desejosos de fazer ecoar existências perseguidas pelo medo da extinção que os atinge. Voltamos à capa do Jornal do Brasil? O ar voltará a ser irrespirável? No calor da hora, em que existências são forçadamente fragilizadas, braços, olhos fechados e vozes sutis contrariam a ideia de que o mundo abstrato em questão esteja apartado de manifestações que reivindicam o direito à vida. Antes, ela se transforma em verbo e se apega a erguer e estruturar afetos. As repetições de tonalidades do céu nos lembram que olhar para o distante garante algum apaziguamento de angústias. “Amanhã será outro dia” e o dia vai raiar novamente, nos diz o poeta. Quando assim ocorrer, vale considerar abrir os olhos lentamente, para não ofuscar a visão. Luz em excesso promove cegueira momentânea a olhos habituados ao escuro. Perceber o mundo com os olhos entreabertos fortalece a imunidade do sensível.

Com braços para resistir, bravar, abraçar e erguer bandeiras, para carregar e escrever o mundo em que queremos viver, “para abraçar seu irmão e beijar sua menina na rua” ou na Praça da Luz, lembremos quanto “viver é melhor que sonhar”. Em tempos obscuros, use seu braço como travesseiro ao pé de uma árvore ao longo de um cochilo, mas lembre-se de tomar cuidado com o sistema que prevê manter o ofuscamento da visão e transforma o viver em um privilégio.