Um sistema de câmeras de vídeo em circuito-fechado capta imagens da sala de exposição da galeria JaquelineMartins e uma habitação privada nos seus arredores, transmitindo-as em tempo real de um local para o outro. O enquadramento das câmeras não mostra a totalidade desses lugares, ao invés, foca em close-up num grupo de objetos, duplicado e colocado em cada um dos espaços. Cada conjunto é composto por uma peça de silicone, por uma série de escritos impressos e por um bloco de notas onde novos elementos podem ser redigidos. Tanto os usuários do espaço doméstico quanto os da galeria são convidados a exercitar-se a partir do manuseio desses objetos, ação que é filmada e transmitida entre espaços. As imagens em vídeo são periodicamente gravadas e arquivadas para utilização posterior sob outras formas videográficas. Após permanecer durante um período de tempo num determinado espaço doméstico, o conjunto fora da galeria é levado para uma outra residência, e assim sucessivamente, fazendo com que este sistema conecte o espaço expositivo a uma série de moradias do bairro.

O sistema-nômade adentra os diversos ritos e ritmos domésticos. A sua chegada é negociada, antecipada e autorizada pelos seus anfitriões, sob uma condição de permanência temporária. O sistema-hóspede vem acompanhado das imagens ao vivo do seu “duplo,” localizado na galeria, e transmite para a sala de exposição um fragmento do espaço-tempo doméstico. A presença deste sistema-dúplice é simultaneamente corpórea e quimérica, sublinhando a permutabilidade entre o dentro e o fora, entre o transitório e o fixo, e entre o pertencimento e o alheamento. Tais dualidades, inerentes à própria condição do hóspede, contaminam a intimidade e interioridade da esfera privada, criando uma brecha na membrana que a separa do exterior. Mesmo à mercê das regras do seu anfitrião, a presença do hóspede automaticamente institui um outro sistema de códigos temporários dentro de engrenagens pré-definidas, provocando uma reação-reorganização do organismo que o hospeda. O sistema-hóspede instituído entre a galeria e a moradia incita e acolhe a participação dos usuários nas suas engrenagens, tornando-se o anfitrião de uma interação entre os seus objetos e os diferentes sujeitos que os manipulam. O manuseio das peças, quando filmado e transmitido entre ambos locais, transforma-se simultaneamente em ato performativo e voyeurístico; por um lado, é ação realizada face a um receptor/público distante, e por outro, é contemplação e testemunho da atividade executada ao longe.

Os planos fixos dos vídeos mostram o alisar, o apertar e o percorrer das mãos sobre as protuberâncias e reentrâncias da peça de silicone. As formas do objeto não remetem diretamente a nada conhecido, mas são estranhamente familiares e próximas ao corpo. O seu desenho não obedece a regras ergonômicas que visam elevar os níveis de eficiência do seu manuseio ou otimizar a realização de uma determinada tarefa. A sua “anti-ergonomia” e materialidade táctil procuram estabelecer uma familiaridade ao toque, estimulando a interação manual e a apreensão corporal das suas silhuetas. Nos vídeos, o ritmo, a força e a expressividade das mãos no manuseio desse “inutensílio”produzem uma narrativa que é encorpada pelos fragmentos escritos localizados ao redor do objeto. As palavras e expressões impressas são continuamente reorganizadas e re combinadaspelos usuários do sistema, e geram, a cada nova configuração, diferentes mensagens e outras sintaxes. A peça e as palavras não só incitam situações participativas mas também a produção de um pensamento sobre este processo, qu eo “participador” pode expressar através da sua própria grafia sobre o bloco de notas incluído no conjunto de objetos. Nas imagens captadas, a relação e negociação entre as protuberâncias e reentrâncias das formas de silicone, da caligrafia pessoal, das palavras impressas e da fisionomia das mãos, dialogam silenciosamente entre si criando uma modalidade de interlocução onde não há predominância de uma linguagem verdadeira única e onde qualquer significado é relativo e provisório. Na ausência de ação, as câmaras testemunham os objetos inertes, naturezas-mortas que manifestam as mensagem deixadas pelo gesto e pelo corpo como ferramentas discursivas em exercício.

O sistema é deflagrador e disseminador de processos comunicativos. O convite à manipulação das peças, das palavras e da escrita, é também um convite à conversa. Diálogo. Solilóquio. A geometria da linguagem estrutura a existência corpórea do “eu” e articula a sua relação como “outro”. O toque é uma das formas de comunicação não-verbal mais eficazes na transmissão de uma mensagem e é também um dos modos mais efetivos para a criação de um vínculo entre indivíduos. Sentir as topografias corporais da peça de silicone traz o indivíduo para o seu próprio corpo e também o conecta indiretamente ao corpo do “outro,” que manuseia à distância o objeto replicado. A peça é simultaneamente um veículo através do qual se tem uma experiência corporal concreta e uma extensão simbólica do sujeito em direção à experiência do “outro”. Sistema-prótese. As formas do objeto de silicone atribuem uma qualidade específica à natureza da sua manipulação, remetendo a diferentes modalidades do toque íntimo. Este tipo de contato físico,considerado privado e pessoal, contorna a parte lógica e educável da mente e adentra o cérebro primitivo, o lugar do instinto, da memória e do desejo. O toque íntimo é o auge da individualidade e da subjetividade, da proximidade do“eu” consigo mesmo e do seu autodescobrimento, do “eu que se abre para o exterior,” do entendimento do “outro” e da concepção de alteridade. Mas no auge da sua intransferibilidade o toque íntimo é também algo profundamente coletivo,transversal a todos, como um denominador comum, carnal, que unifica e nivela. Linguagem universal. Êxtase.

O espaço doméstico é o lugar que gera e preserva a intimidade, permitindo a expressão máxima da individualidade e subjetividade. Ele é também um dispositivo através do qual se fazem implementar valores e condutas coletivas que estão acima dos indivíduos, unificando-os e nivelando-os. Hábitos e hierarquias produzidos na micro-escala do quotidiano doméstico reverberam na macro-escala das dinâmicas sócio-espaciais. Inversamente, discursos “oficiais”veiculam as noções de “doméstico” e “lar” a desígnios políticos, econômicos e ideológicos. Hoje, o “lar” é cada vez mais uma estrutura permeável, que recebe e transmite imagens, sons e dados,dentro de uma rede relacional virtual onde os contornos entre o doméstico e o público e entre individual e coletivo, se distendem e dissolvem. A “esfera íntima” torna-se espetáculo, moeda de troca e objeto de gestão política,realizadas por meio do tecno capitalismo, das biotecnologias, da mídia global,das redes sociais, e dos próprios cidadãos. A res publica esquiva-se do público e adentra o íntimo-doméstico; torna-se omnipresente e dissipa-se. A expectativa exponencial de intersubjetividade e interatividade estabelece nexos colidentes entre participação e voyeurismo, entre vinculação e desconexão, entre individualidade e impessoalidade, e entre o “eu” e o “outro”. Para a sociedade ocularcêntrica e vigilante a câmara é a prótese do olho. Na sociedade amnésica a gravação é a prótese da memória. Fast-Forward. Fricção-Ficção. Introjeção-Projeção. Replay. A História em loop.