“Ex terra factum” (feito de terra) é a etimologia latina inventada por Alberto Savinio, com a sua habilidade para a rápida transfiguração da linguagem verbal para a visual, da palavra italiana “esterrefatto” (estupefacto). Esta definição aparece num dos seus primeiros textos, intitulado Psicologia dello Stupore (Psicologia da Estupefação, Espanto), em que o autor declara: “expressivamente a linguagem dá a ideia de espanto através da imagem do homem reduzido a matéria: ser tornado em pedra, feito de terra, etc”. Esta etimologia macarrónica não se refere apenas à repentina metamorfose provocada no observador pelo espanto despertado ao olhar para uma realidade fenomenológica particular, em vez disso sugere a natureza participativa da relação entre o homem e a matéria do mundo físico. Um mundo que, mesmo que inorgânico, nunca é inanimado ou inerte, mas “fantásmico”, ou seja, iluminado por um sentido de enigma que rasteja por baixo da superfície das coisas, deixando perceber o sentimento da sua inteira vitalidade: o ar cheio de presenças, a paisagem cheia de lendas, sedimentadas no subsolo; os objetos que sussurram entre si, até as estátuas preservam a vitalidade da cor da pele por baixo da brancura do mármore.

Segundo Savinio, o artista autêntico deve auscultar esta profunda realidade, sintonizar-se com a mesma, tomar parte nela, sem a transcender em nome de um ideal, pois o conteúdo da vida quotidiana é já inesgotável. “A arte requer a ‘permanência na terra’”. Um artista sério, digno deste nome, não abandona a terra, não evade ou emigra dela, mas na terra, nas coisas terrenas à mão, mistério e lirismo, maravilha e profundidade procura”.

O trabalho de Enzo Cucchi surge do espanto, de um impulso imposto pela imagem deslumbrante que não existe previamente à pintura, mas que lhe é consubstancial: pintar dá forma a uma visão que floresce da realidade em torno, que é o resultado de uma perceção complexa, não dependente exclusivamente da visão, mas captada através dos órgãos sensíveis que atuam no artista como a antena num inseto, ou a cauda num cão ou num gato.

O inventário visual de Cucchi é nutrido pela geografia da Itália central: a paisagem de Marche, a sua região nativa, com o mar Adriático num lado e a agricultura, o campo montuoso no outro, em que a espiritualidade e a magia, ligadas à cultura camponesa, persistem latentes. Outra fonte essencial de imagens é Roma, onde o artista vive desde o final dos anos setenta, alternando com as suas estadias na região de Marche; Roma, a cidade do palimpsesto, onde o som dos passos ecoa a antiguidade, com os seus mitos e lendas sagradas sob o asfalto.

Não é apenas a iconografia de Cucchi que está enraizada na terra: os signos fluidos e a matéria pictórica derivam da sua energia, bem como do gesto que forma e risca a escultura em cerâmica ou bronze. Não é nenhuma coincidência que um dos artistas antigos favoritos de Cucchi seja Masaccio, pelo seu realismo, o seu extraordinário sentimento do universo, traduzido num trabalho baseado numa mão cheia de ideias simples, como “a ideia de pôr um homem de pé sobre o solo, que é o que eu faço quando acordo pela manhã – quero dizer, eu ponho os meus pés no chão”.

Embora figurativo, o trabalho de Cucchi adere às coisas sem se tornar narrativo. À semelhança da poesia, transmite ao observador a excitação percetiva do artista, recreada sobre a tela pela faísca produzida pelo impacto dos elementos discretos separados do fundo contínuo, gerando suspensões visuais carregadas de tensão. É a transposição para pintura de uma experiência vivida pelo próprio artista, enigmas e tensões percecionados como elementos de alteração e resistência ao fluir da realidade, que exercem um fascínio cativante, bem expresso num dos seus versos: “Existem muitos espíritos no ar e muitas sombras nas coisas, é a arte que as convoca e lhes acena”.

No estudo de Daniel Arasse sobre o detalhe na Pintura, este é definido como uma porção particular da pintura, identificável dentro de composições maiores, que cativa a atenção, apela ao observador e lhe exige um olhar diferente. Autónomo em relação à totalidade da pintura, este tipo de detalhes parece por vezes pertencer a uma época diferente da do próprio autor, adquirindo um carácter universal, convidando a uma perceção próxima e íntima. O detalhe revelado atua como uma rutura, um elemento de intensificação emocional que produz uma tensão com a totalidade da composição, a lacuna que leva ao colapso da narrativa, e rompe com o dispositivo de representação.

O corpo de pinturas em pequena escala criadas por Enzo Cucchi em 2017-2018 possui o poder intrínseco do detalhe “revelador” descrito por Arasse: emocionalmente intensas, as pequenas telas são autónomas, ainda que possam ser recortes de uma composição maior. (“detalhe” implica corte, também etimologicamente). As três pinturas desta produção recente expostas na Madragoa, mostram partes de corpos que é incerto se são humanos ou estátuas, enquadrados num plano aproximado que contém a imagem numa dimensão suspensa, ambígua, como que colocada entre parêntesis. Em cada pintura, o corpo é associado com um elemento aparentemente desconexo, uma justaposição que transpõe uma epifania, um microcosmo formado pelo encontro de elementos de diferentes contextos semânticos, mas também de matéria pictórica e extra pictórica.

Osservo (observo) apresenta um fragmento que, à primeira vista, parece ser uma cena de deposição: duas pernas e uma mão com chaga, na qual se destaca a imagem de um pássaro azul, sobreposta sobre o corpo pálido. O corpo é pintado com um cinzento metálico que enfatiza a sua dureza escultural, embora a tensão muscular que percorre as pernas contraste com a pose inerte da suposta deposição, e a sua posição cruzada, após inspeção atenta, se prove impossível. O folheado que reveste a pintura do lado esquerdo encoraja um olhar íntimo, como que através de um vidro, estabelecendo a ponte entre a realidade e a superfície pintada. A sua presença alude a um pedaço de moldura, sublinhando a sua dimensão parcial. A folha de madeira também aparece em Sospeso (Suspenso), na qual duas pernas polidas refletem uma série de contrastes: preto e branco, cheio e vazio, luz e sombra, frente e verso, enquanto duas pombas atadas aos gémeos, como duas armas inofensivas, invocam ironicamente a figura de Mercúrio em descanso. A terceira pintura, Sem título, enquadra a aparente bacia de uma escultura clássica, colorida a violeta, que aninha no seu membro mutilado uma pequena caveira. O elemento extra pictórico consiste num recorte de tela branca sobreposto à tela crua do fundo da pintura. É outra saliência tangível do mundo real, que neste caso evoca um drapeado, talvez pendurado sobre a pintura pelo seu próprio protagonista nu.

Em Sem título (2018), a escultura em si é diretamente projetada para o mundo real, transformando toda a galeria no seu pedestal. Saindo pela janela, a escultura materializa uma epifania, o vulto de uma figura coberta, com as mãos juntas, que imediatamente identificamos como a típica representação religiosa da Virgem. No entanto, até esta figura familiar é transformada por Cucchi numa imagem estranha e ambígua, ao sobrepor às características em que a Virgem é tradicionalmente retratada a imagem de um gato. Com esta metamorfose, o artista passa uma rasteira à iconografia popular e consolidada, que é suspensa, não apenas no sentido metafórico. As referências desta escultura podem ser encontradas nos híbridos de homem e animal imaginados pela visionária fantasia medieval, e recorda algumas figuras retratadas em sinos de bronze produzidos no Norte de Itália no século catorze. Fundida a bronze e revestida com uma patina cor de barro, a escultura parece feita de terra. Estendida horizontalmente no ar, o céu é o seu fundo, e a sua sombra é projetada sobre o chão. De cima acena aos transeuntes, espantando-os.