Entre 1985 e 1986, Martin Kippenberger, em Colônia, embarcou rumo ao Brasil acompanhado pela fotógrafa Ursula Böckler, encarregada de registrar o périplo de três meses. Àquela altura, o artista já era um herói local na Alemanha Ocidental, famoso tanto por seu trabalho quanto por sua personalidade histriônica. Kippenberger nomeou a expedição ao “exótico” país como “Magical Misery Tour”, parodiando o famoso álbum dos Beatles. O tom sardônico e irreverente é típico do artista. Seu slogan também foi o ponto de partida conceitual para uma série de trabalhos embebidos em estereótipos, autodepreciação e interpretações jocosas, que expressam uma aposta na autoridade moral e cultural supostamente conferida por seu passaporte alemão. As fotos de Böckler revelam Kippenberger como um típico “gringo”: vermelho de sol, de shorts e sem camisa, encantado com as mazelas tropicais e pronto a interpretá-las a partir de sua posição privilegiada. Naquela época, ainda se falava em “Terceiro Mundo” e o circuito da arte contemporânea oficial se concentrava essencialmente entre Nova York, Londres e Colônia.

“Aqui é o fim do mundo”, escreveu Torquato Neto, quase vinte anos antes, no refrão da música Marginália II, gravada por Gilberto Gil em 1967. O poeta piauiense desconstrói – com a fluência associativa típica do grupo tropicalista – a exaltação nacionalista do romântico Gonçalves Dias. Seu exercício sagaz de intertextualidade desvela a complexa realidade brasileira durante a ditadura militar. Era o início dos chamados “anos de chumbo” e o experimentalismo exuberante da Tropicália logo foi dispersado por uma série de perseguições e pelo exílio dos integrantes do movimento, que antes de partirem protagonizaram uma verdadeira revolução estética no cenário cultural brasileiro.

Em 1971, Ivan Cardoso convidou Torquato Neto para interpretar Nosferatu no Brasil, um clássico do gênero “Terrir”, termo criado pelo poeta Haroldo de Campos. No mesmo ano, Neville de Almeida rodou o lendário Mangue-Bangue, uma colagem audiovisual radical realizada numa zona de prostituição carioca que o cineasta visitou com Hélio Oiticica. Os dois filmes revelam certa desconfiança dos cânones da história do cinema ocidental, mostrando, cada um a sua maneira, pela via do absurdo tragicômico e do deboche, um Brasil ameaçado pelo autoritarismo e pela censura.

A versão marginal e ensolarada do vampiro Nosferatu, que toma água de coco em Copacabana ao som de bossa-nova, poderia facilmente ser um dos personagens cáusticos de Tiago Carneiro da Cunha, que são o ponto de partida desta exposição. Minha opção, neste texto, de chegar ao seu trabalho pela via da associação livre, replica a dinâmica que nos levou às obras em exposição: uma procura compartilhada por artistas de diferentes gerações que, assim como ele e os exemplos citados acima, optam por habitar a tênue linha entre o cômico, o trágico, o melancólico e o sedutor quando se propõem a representar e a discutir criticamente os códigos visuais que constituem uma ideia de identidade cultural brasileira ou, mais amplamente, da região que se convencionou chamar de América Latina no mundo globalizado e do chamado “circuito internacional da arte contemporânea” – que a propósito começou a ser instaurado na época da viagem de Kippenberger.

Yes, nós temos bananas e melancolia tropical para dar e vender na exposição. Optamos por criar um ambiente cacofônico, repleto de associações livres, jogos semânticos, homenagens, intertextualidades, releituras e profanações variadas. Os trabalhos em exposição põem em cheque a ideia de alta e baixa cultura, optam pela transgressão e pela idiossincrasia como antídotos às interpretações rasas, discursos fechados e olhares unilaterais. Levando isso em conta, a inclusão de uma das imagens originais feitas por Böckler – única artista europeia na mostra –, a qual retrata Kippenberger no Brasil, tem a intenção de ressaltar a autonomia do olhar da fotógrafa em relação à abordagem ambivalente do projeto do artista. Em várias imagens, as lentes de Böckler captam com certo constrangimento os movimentos de um artista-turista fanfarrão em um Brasil recém-saído de vinte anos de ditadura militar, e acabam por se tornar um documento visual importante da mentalidade de uma época.

Distante da “miséria mágica” estilizada por Kippenberger, o território estereotipado que Carneiro da Cunha explora há anos e que ecoa nesta exposição, é resultado da sublimação intencional de um contexto que é insuportavelmente real. Ao evocar com humor o que é canônico ou inenarrável, sua obra nos aproxima de elementos da nossa sociedade que, por serem tão flagrantes e traumáticos, desafiam a razão. Quando o noticiário se aproxima tão intensamente da narrativa fantástica, os monstros lodosos e os diabos sacanas de Tiago Carneiro da Cunha, ou mesmo o escatológico Polochon de Lina Bo Bardi, deixam de parecer absurdos e nos lembram do potencial agregador – e por que não revolucionário? ­– do senso de humor como ponto de partida para reflexões criticas sobre dinâmicas sociais arraigadas, e que necessitam de revisão.

Curator Fernanda Brenner