Mas a uma certa altura, quase instintivamente, vira-se para trás e vê-se que uma porta foi trancada às nossas costas, fechando o caminho de volta. Então sente-se que alguma coisa mudou, o sol não parece mais imóvel, desloca-se rápido, infelizmente, não dá tempo de olhá-lo, pois já se precipita nos confins do horizonte, percebe-se que as nuvens não estão mais estagnadas nos golfos azuis do céu, fogem, amontoando-se umas sobre as outras, tamanha é sua afoiteza; compreende-se que o tempo passa e que a estrada, um dia, deverá inevitavelmente acabar.

(Dino Buzzati)

A segunda metade do século XX foi marcada pelo surgimento de uma corrente literário-filosófica, o existencialismo, que buscava senão explicação ou consolo, pelo menos promover uma reflexão profunda sobre a condição humana no pós-guerra. O existencialismo, laico e ateu, assumia que a morte de Deus era um problema real – sem a fé numa entidade superior capaz de salvar a todos, sobrava a fé na ciência e na própria humanidade. A questão é que ambos, ciência e humanidade, também tinham falhado estrondosamente os seus princípios aquando da II Grande Guerra por tudo que daí adveio. Restava, pois, o livre arbítrio - o direito de escolher o próprio destino e de arcar com as consequências destas escolhas. E é neste ponto que a humanidade entrou em depressão profunda, porque assumir os seus atos seria pactuar com as manifestações recentes do fascismo e reconhecer que, se havia saídas, estavam fechadas. O romance de Dino Buzzati, Il Deserto dei Tartari, publicado em 1940, existencialista avant la lettre, relata a história de um soldado que toma consciência, vagarosamente, da sua situação: quase impúbere, recém-saído da academia militar, é enviado a uma fortaleza longínqua e lá fica à espera de um ataque que nunca se realiza. Enquanto espera, o tempo passa, metafórica e cruelmente sobre seus ideais, sua juventude e a esperança de servir, de alguma maneira, o seu país. E foi este deserto, real e metafórico, que inspirou Christine Henry a conceber esta exposição na Associação 289, em Faro.

Fuga, como diz a artista, “trata de trajetórias, da fuga como rompimento.” A fuga é um possível caminho que muitos percorrem, desde refugiados a pessoas que já não se sentem em casa nas suas próprias casas, ou na sua casa mater – o planeta Terra. Foge-se quando não se encontra saída no lugar em que se está, mas muitos sabem que a fuga pode ser uma estrada sem retorno, um caminho sem volta, um estado de impermanência: passa-se a viver em movimento ou do movimento. Mas há ainda a fuga de gás, da água dos canos, dos líquidos dos contentores. A fuga é um movimento que não se controla totalmente, representa aquilo que escapa, pois foge-se também ao controlo do Estado, dos pais, do sistema.

No final dos anos 70, Rosalind Kraus publica o texto que se tornou referência para a arte contemporânea, A escultura no campo ampliado. Ao tentar contemplar, e dar conta, da produção artística que emergiu, essencialmente, a partir dos anos 60, diz:

“Nos últimos 10 anos coisas realmente surpreendentes têm recebido a denominação de escultura: corredores estreitos com monitores de TV ao fundo; grandes fotografias documentando caminhadas campestres; espelhos dispostos em ângulos inusitados em quartos comuns; linhas provisórias traçadas no deserto.”

Rosalind Krauss, A Escultura no campo ampliado, in Gávea (Revista do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura), nº 1, PUC-Rio, 1984 (87-93).

A definição de escultura, e do objeto artístico em si, torna-se cada dia mais complexa porque não há linhas que definam, ou constranjam, a criação. Ao artista é dada a liberdade plena de intervir no espaço, de experimentar materiais, de destruir e revolver o cânon, numa atitude de constante reinvenção. Neste sentido, a escultura passa a ocupar um papel central nas manifestações artísticas – ora expandindo o desenho, ora ampliando a pintura. O trabalho de Christine Henry é escultórico – existe no espaço e ocupa espaço. Mesmo quando se trata de fotografias ou desenhos, estes funcionam em relação ao espaço e ao conjunto da sua obra.

Fuga é composta de esculturas, ou de grupos escultóricos, que se referem a factos específicos da vida da artista ou a outros tantos, igualmente pessoais, mas da ordem do metafórico e do existencial: representam, ou apresentam vestígios, de fugitivos diversos no seu movimento contínuo. Nalguns casos, ou em todos, num movimento circular e infinito, como na música de Bach – a fuga é uma espécie de permanência. As vozes se avolumam e se entrelaçam, repetindo o mesmo tempo, com variações. É um movimento centrípeto ou um não-movimento. Como o que ocorre ao seu Carrossel – uma peça de grande dimensão, criada a partir da matéria básica de quase todas as obras de Christine Henry - pedaços de madeira, ferros, tecidos, ossos de animais. A artista apresenta-nos um objeto fantástico que remete, ao mesmo tempo, ao sonho e ao pesadelo, à infância e à perda da inocência, aos parques de diversão e aos lixões que acolhem dejetos. Para mim esta é uma das peças mais emblemáticas desta exposição, pois contém em si mesma um projeto expositivo e artístico, ao mesmo tempo que traduz as inquietações da artista e demonstra, de forma inequívoca, a sua mestria no domínio da escultura, ou melhor dizendo, da criação de objetos ampliados que ultrapassam o meramente escultórico.

As restantes esculturas, construídas com matéria semelhante, contam-nos pequenas histórias: a fuga dos pais pelas estradas francesas, com o carro a abarrotar de objetos pessoais que não se queria abandonar durante a II Guerra. Linha de demarcação une o quotidiano, uma mesa, ao inusitado e demarca um espaço, o limite, ou a fronteira buscada não só pelos seus pais, mas por muitas famílias que fugiam da ocupação alemã. Esta mistura de objetos banais – mesas, cadeiras e camas, com elementos estranhos como os filtros de ar dos carros, que se convertem em desenhos e objetos escultóricos, ou os pelos da crina dos cavalos, retirados a cada escovagem, ou ainda os ossos de animais encontrados nas suas caminhadas pelo campo, são transformados em suporte e material para as suas criações. O resultado final – entre o lúdico e o tenebroso, entre o belo e o sublime, são sempre objetos políticos que transfiguram as ideias da artista em formas mais ou menos reconhecíveis, mas nunca as mesmas- tudo é recodificado, transformado, recomposto. E nada existe em solidão: cada objeto relaciona-se com o seguinte. É uma exposição de esculturas, naquilo que a escultura tem de ser/pertencer a um campo ampliado, em que mesmo as fotografias não são apresentadas como tal, mas servem como elo de ligação entre o demasiado humano e o etéreo – são superfícies onde a luz atua e deixa marca. Porque há uma esperança em meio ao tom mais lúgubre que o tema, e as peças, possam emular. Há esperança porque há luz, no fim ou no começo, como um facho que ilumina uma noite escura. Como um holofote acendido num estúdio vazio pelo cineasta Federico Fellini para provar a todos que, afinal, nos seus filmes, sempre houve luz – matéria-prima da fotografia e reveladora de imagens.

Uma cama que se transforma em embarcação; restos de um portão de ferro que se convertem numa mesa de ping pong; um revólver desgastado que aciona uma bomba de gasolina… Nada é o que parece ser, ou melhor dizendo, tudo se transforma e assume uma nova dimensão. Porque esta exposição fala da humanidade e do seu movimento contínuo a fugir, muitas vezes, de si mesma. Como na fortaleza, de Dino Buzzati, o tempo e o espaço deixam de fazer sentido, porque funcionam numa outra dimensão. E A Fortaleza é a peça que está no princípio da fuga, ou fora dela, como quem espreita: através do desenho sobre fotografias, a artista insinua a montanha inacessível, sugerindo uma paisagem fantástica e simultaneamente sóbria, que representa, quiçá, o ponto de fuga que o soldado de Buzzati (ad)mirava. Um ponto na paisagem. Numa paisagem da qual não se consegue nunca fugir.

A Associação 289 está situada na antiga sede da Associação dos Comandos de Faro, Sítio das Pontes de Marchil, IC4, à saída de Faro.