Aflição de ser água em meio à terra
E ter a face conturbada e móvel.
E a um só tempo múltipla e imóvel.

(Hilda Hilst)

A arte nasce como imago, como imagem e sua função era, primordialmente, ritual. O teórico francês Régis Debray afirma que “a arte nasce da morte”, pois as primeiras imagens eram destinadas às pedras tumulares ou às máscaras mortuárias, como se a reprodução da face, ou do corpo humano, através da fixação em imagem, eternizasse o retratado.

Vencer a morte – ou pelo menos, perdurar enquanto símile – semelhante, é um atavismo que chega aos nossos dias. Desde as primeiras imagens feitas à mão até à era da reprodutibilidade técnica, sobrevive o desejo, muito humano, de permanecer, de perdurar para além do seu próprio tempo. Quando os movimentos de vanguarda desmontaram a figura humana, ou apagaram-na das/nas suas representações, a mesma sobreviveu através da fotografia e do cinema.

O trabalho de Vilma Correia é, antes de tudo, um gesto de coragem, um gesto genuíno de criação naquilo que a criação tem de mítico ou transcendente: o gesto iniciático das culturas ancestrais, a modulação do barro, matéria pobre e frágil, que se converte em carne, sangue, pele e osso. Que se transforma em vida. A artista, ainda jovem, encontrou um caminho, uma técnica, uma maneira de traduzir em gesto seu pensamento. As figuras que saem das suas mãos, feitas de terra molhada, de barro, falam da ancestralidade deste ato – criar para continuar vivo. Não são retratos, nem pretendem sê-lo, no sentido mais vulgar do termo, não reproduzem o humano, produzem novos sentidos, traduzem o invisível, que é o que verdadeiramente pode perdurar.

No seu último projeto, a exposição Inocente, cúmplice e culpado, que esteve patente no espaço da Associação 289, produziu uma série de esculturas em barro vermelho, cada uma delas com três caras – umas mais visíveis que outras, umas voltadas para fora e outras voltadas para dentro, como ensimesmadas ou envergonhadas. Faces ocultas de uma mesma matéria, de uma base comum, como que a revelar, ou desvelar, o que ocultamos. Somos um e muitos, e habita em nós a luz e a sombra, o que mostramos e o que não queremos revelar. Cada um de nós é uma multidão. As obras da artista parecem inacabadas, como se a qualquer momento, pudessem partir-se. Mas a fragilidade aparente, e real, as sobras, os restos, as arestas não limadas, são frutos da concepção da peça, não do acaso.

Se a arte nasceu da morte, ou da necessidade humana de eternizar-se, Vilma Correia diz-nos, através do seu trabalho, que a única eternidade possível é a do gesto – irrepetível e único. O gesto que molda, que cria formas e que traz em si milhares de gestos, antepassados do seu e nele embutidos.