“Não tenho direito a nada, mas mereço tudo” é o refrão, a oração constante das vítimas, daqueles que sempre se sentem prejudicados na contabilidade dos empenhos, promessas e desejos não realizados. Ter se sacrificado, tudo ter feito em prol dos outros ou de uma situação, é pensado como trunfo, como aval de garantia de tudo merecer.

Nada mais alienante, nada mais coisificante para o indivíduo, para o ser humano, tanto quanto para suas relações sociais e familiares, do que a certeza de merecer, mas não ter direitos, e quando esta divisão entre o indivíduo e o outro, quando estas fragmentações existenciais são vivenciadas como “não tenho direito a nada, mas mereço tudo”, este postulado inicia um processo de revolta, exacerbando medos e frustrações criadas por estar submetido ao outro, a seus desejos e vontades, por vezes, desumanas.

Sacrifícios, renúncia e perdão são os sustentáculos das relações coisificantes e alienantes, principalmente no âmbito familiar. Perceber o que está em volta reduzindo-o à situações convenientes ou indesejáveis estrutura um forte sentido de oportunidade. Insistir em aproveitar as brechas que surgem, cria atitude oportunista, que se caracteriza em esconder incapacidades através de ajudas ou artifícios, transformando-as em capacidade de conseguir através do outro, ou melhor, usando o outro.

Este direito de usar o outro é reivindicado e neutralizado pela idéia de tudo merecer. Cheio de planos, metas e desejos responsáveis por frustrações, medos e ansiedades, o indivíduo sofre, e assim, se sente vítima do sistema e das pessoas. Lidando com esta distorção de se sentir centro do mundo - distorção criada pelo autorreferenciamento - cresce a idéia do mérito não reconhecido, aumenta a impressão de não ter os meios necessários à vida, de não ter a mínima retribuição aos sacrifícios e ações realizadas. Esta avaliação, geradora de frustração, é responsável pela exigência de receber e de ter direitos assistidos e mantidos.

Não ter direitos, nada receber em função de tudo que acha merecer, cria derrotados, reclamadores e insurgentes que tudo recebem, tudo pedem, tudo negociam para conseguir suprir suas necessidades e desejos, agora catalogados sob o rótulo de merecimento.

Mesmo quando se insurge e se sente explorado nas relações de trabalho, ou quando socialmente discriminado, o refrão “não tenho direito a nada, mas, mereço tudo” é mantido, embora tenha suporte na constatação dos processos de espoliação e uso pelos dotados de poder e de capital, pois, no contexto autoritário, assistencial e meritocrático, as contradições não são percebidas, apenas se enxerga os grandes vazios e a sensação de falta: fome e carência que urgem ser preenchidas.

A gravidade dos posicionamentos entre direitos e merecimento resultam da divisão e oposição entre os mesmos. Avaliar é reduzir a valores, geralmente incompatíveis com o processo relacional de estar com o outro. Quebrar esta unidade relacional é estabelecer posicionamento de vítima, de senhor; merecendo, castigando, premiando. Ao quebrar a relação dialética, estabelecem-se posições: surge o superior-inferior, surge o senhor-escravo, o doador-dependente e assim a despersonalização, a divisão é construída, construindo-se também demandas, renúncias e queixas.

Quando os pais se relacionam com os filhos através de recompensas e castigos, constroem escalas de valores e merecimentos referenciados nos processos de submissão e frustração, que mais tarde vão se atritar com os outros nas diversas situações onde o compromisso, a barganha e a chantagem podem ou não imperar. Até perceberem que não é preciso “dar para receber”, “mentir para disfarçar”, as pessoas se sentem estranhas, sem pertencimento, sem saber como agir.

Quebrar a unidade sempre pulveriza a personalidade e cria autômatos doadores e/ou dependentes. Pródigos e mesquinhos começam a povoar o mundo, criando ordens utilitárias e propósitos dilapidadores das possibilidades humanas.