Querer ser o que não se é resulta da não aceitação de limites, não aceitação da realidade vivenciada. O gordo que quer ser magro, o negro que quer ser branco, o feio que espera se transformar em belo, o pobre que quer ser rico, o homem que quer se transformar em mulher, a mulher que quer se transformar em homem são exemplares de não aceitação. A questão não é realizar o que se almeja, mas sim questionar esse desejo, essa não aceitação de limites, principalmente quando estamos em uma sociedade que propicia tecnologia para realização de quaisquer desejos.

A questão da transexualidade é bem abordada pelos autores Marco Antonio Coutinho Jorge e Natália Pereira Travassos no livro Transexualidade - O Corpo entre o Sujeito e a Ciência, Editora Zahar, que no trecho a seguir expressam:

“Mas a ciência, ao desconsiderar que a expressão máxima da subjetividade é o conflito psíquico, que necessariamente subjaz à questão transexual, responde de modo raso a esta demanda e aciona com excessiva prontidão sua parafernália tecnológica para atendê-la. Em nosso entendimento, é necessário suspender as soluções abruptas que o discurso da ciência fornece, as quais paralisam a possibilidade de elaboração do conflito que o sujeito precisa fazer antes de deliberar sobre as escolhas mais importantes de sua vida (ps.47-48).”

O que é questionado aqui não é a satisfação, a realização dos sonhos ou da fantasia, mas sim saber se esses sonhos, ao negar limites biológicos, escondem problemáticas e valorizam soluções, assim como acontece nas conhecidas situações nas quais vemos indivíduos valorizarem dinheiro, poder e beleza como chaves para o sucesso e bem-estar. O conflito entre o que se tem e o que se quer, entre o que se é e o que se gostaria de ser, traduz insatisfação e não aceitação. Essa não aceitação só pode ser transformada por meio de questionamentos. Buscar o que se quer não é necessariamente buscar o objetivo do que se deseja: inúmeros exemplos mostram que não se quer ser rico para acumular dinheiro, mas sim se quer ser rico para comprar pessoas, oportunidades, acontecimentos e consideração, ser aceito e reconhecido, por exemplo. Quando um homem quer ser transformado em mulher, ele muitas vezes deseja apenas consideração e atenção; outras vezes deseja evitar ser estigmatizado por seus maneirismos femininos. Muitas mulheres, por sua vez, não desejam barba, bigode ou outros sinais de virilidade, desejam liberdade, direitos não cooptados, segurança física, ou, também, evitar discriminações. Enfim, os deslocamentos da não aceitação devem ser considerados pois as configurações que deles resultam frequentemente mudam.

A manipulação dos desejos gerados pela não aceitação de realidades, pela não aceitação de si e do outro, pode ser instrumentalizada pelas ordens econômicas por meio de suas indústrias, técnicos e laboratórios. Mercados são abertos pelos produtos oferecidos para encorpar e polarizar o desejo, a não aceitação do limite, como a insatisfação de ser homem ou de ser mulher, por exemplo, que é indutora de inúmeros problemas físicos, hormonais, assim como exige técnicas cirúrgicas continuamente melhoradas. É quase a mesma relação existente entre spam e antivírus. Acende-se o desejo e os caminhos modeladores, as maneiras de realizá-los. Nesta capitalização de desejos, frustrações e ilusões, nada é impossível, toda esperança pode ser realizada. Nossos desejos de voar podem vir a ser satisfeitos, no futuro, pela existência de asas implantadas que nos levem a planar além do chão, por exemplo.

O novo mundo que se abre é um mundo cada vez maior: satisfaz necessidades e desejos, também anula dificuldades consequentemente alienando o homem de si mesmo. Neste mundo é cada vez mais válida a fala de Elie Wiesel, premio Nobel da Paz e sobrevivente do holocausto, escolhida pelos autores do Transexualidade: “o homem se define pelo que o inquieta, não pelo que o assegura”.

Na tentativa de ampliar e transformar limites podemos ser vitoriosos, transformar o mundo e a nós próprios, mas também podemos nos tornar massa de manobra para ampliação de mercados exauridos e agora revitalizados; tudo depende do questionamento do próprio desejo, da própria aceitação ou não aceitação de realidades. Não há como realizar nossa humanidade sem questionamento, sem disponibilidade e transcendência.

Não há como realizar nossa humanidade sendo cooptado pelas vantagens e desvantagens, pelas dinâmicas do sistema, pela neutralização de conflitos que nos permitem ser-no-mundo-com-os-outros.