Infelizmente a ideia de constatação como verificação e validação de acontecimento ocasiona esvaziamentos em relação ao que acontece. Dentro dessa ideia, não basta acontecer, é preciso provar o que acontece, é preciso descobrir autoria. A insatisfação com a evidência é um compromisso com a causalidade, com garantias e ordens extrínsecas ao ocorrido.

Nas visões pragmáticas e cônscias de utilidades e bom senso, sempre cabe explicar, sempre cabe dizer “não é nada do que você está pensando, posso explicar”. “As aparências enganam” é o que normalmente se usa como justificativa. Esses desrespeitos e acréscimos à evidência são uma maneira de negá-la por meio de transformações. Quando o que se vê é o que se vê? Quando se percebe o que se evidencia. Quando o que se vê não é o que se vê? Quando se interpõem dados extras ao percebido, desde memória, medos e desejos à expectativas. Esses dados extras são todos responsáveis pelas distorções, daí não se saber se o que está acontecendo, acontece.

Encontrar a estimada porcelana chinesa quebrada é também encontrar a possibilidade de checar a quebra. A porcelana quebrada é um encontro tão insatisfatório e frustrante, que automaticamente a frustração é deslocada para saber como quebrou, quem quebrou, quando quebrou. Perguntas que nada esclarecem nem mudam a situação - porcelana quebrada - apenas permitem checar o quebrado. Esse é o fato e transformá-lo em necessidade de flagrante e em seguida buscar suas causas cria autores, cria crime, erros, culpa e transforma o fato - porcelana quebrada - em índice, motivo ou objetivo de batalhas a vencer, indenizações a receber.

Essas atitudes ocorrem frequentemente, daí ser corrente a ideia de que se não há flagrante, não há crime, tanto quanto flagrante, erro, acontecimentos têm autores e pode ser crime. Isso é tão determinante para os comportamentos que já está estabelecido como maneira de negar acontecimentos: se não há flagrante, não há crime. O jarro caiu por acaso, ninguém o derrubou; o vento era forte, quebrou. Queda é também uma variável fortuita. Diferença entre acaso, fortuito e necessário passa a estabelecer os critérios do que acontece, concluindo que não há crime pois não há autor e consequente flagrante. Muitos pensam que se eximir do flagrante faz mudar os acontecimentos. Essa atitude é desconexa e absurda, entretanto, existe até em relação às obviedades da vida pessoal e grupal. Desse modo encontramos pessoas que dizem que são analfabetas pela preguiça de estudar, são ricos pela graça de Deus, pobres pelo fato de não ter diploma, de não ter estudado. São explicações autorreferenciadas que negam as estruturas relacionais, que desconsideram os problemas de acumulação, de insuficiência e empobrecimento - os fatos - transformando flagrantes situacionais em narrativas que distorcem o acontecido.

Não há como ser pescador de trutas nos oásis do deserto da Tunísia. Achar que só há crime quando há flagrante é incentivar a negação da evidência. Ver o antes, ver o depois são fundamentais, entretanto jamais se pode negar a evidência do agora, e quando se faz isso se busca negar responsabilidades, até mesmo culpas. Essa mudança de atitude cria implicações, uma delas é a ênfase na busca de causas expressas por flagrantes e erros.

Flagrante é a validação do ocorrido, o que necessariamente cria outra evidência. Nesse sentido, flagrante não pode ser entendido enquanto causa e explicação do que ocorre, ou seja, detectar o flagrante nada prova, apenas estabelece evidências esclarecedoras da continuidade do ocorrido. Dedicar-se à continuidade é esclarecedor pois traz evidências estabelecidas no mesmo contexto do acontecido, ao passo que imaginar o fato como resultante de causas aleatórias a suas estruturas contextuais provoca dispersão e/ou aglutinações descontínuas. Não deixa de haver a morte - o fato - e não é necessário flagrar o seu autor pois nada muda em relação ao ocorrido - alguém morto. Os fenômenos existem independentes de serem incluídos em redes conceituais que os expliquem. A constatação ou verificação dos mesmos é apenas um invólucro que nada muda em sua configuração enquanto evidência, mas que se transforma em outras evidências à depender de seus contextos estruturantes, como flagrantes e crimes por exemplo.