Tudo o que conhecemos, toda nossa vida psicológica decorre do que percebemos. Somos um organismo com um sistema nervoso responsável pela realização desse processo perceptivo. O que nos permite perceber e o que é percebido depende das relações perceptivas que estabelecemos com o outro, com o mundo, com nós próprios. O processo perceptivo, relacional, sempre ocorre no tempo presente. Seja a percepção de algo presente, passado ou futuro, quando ela é vivenciada, ela é o que ocorre, não importando se é uma lembrança, uma antecipação ou um estar diante. O contexto de estruturação da percepção pode estar relacionado com o que ocorreu (passado), ou com o que vai ocorrer (futuro), mas o que se vivencia é sempre presente, quer seja o que se lembra, quer seja o que se antecipa.

Vida psicológica é vida perceptiva, podemos dizer que o processo perceptivo nos constitui, nos define e identifica. O pensamento é a continuidade, o desdobramento de nossas percepções e a memória é o que nos permite mantê- las, estocá-las. As falhas de memória são decorrentes de vivências não presentificadas (o presente como Fundo não é percebido). Quanto mais voltados para trás, para o que ocorreu, ou voltados para o futuro, preocupados com o que vai ocorrer, menos ocupação com o que ocorre, consequentemente menor formação de memória, de engrama.

Percebemos pela visão, audição, olfato, gustação e tato. A organização existente é assim apreendida. Os dados sensoriais não são captados e recolhidos pelos sentidos para organizações posteriores, como diziam os que não globalizavam o processo perceptivo (os que achavam que existiam sensações elaboradas pela percepção, como Locke, Hume, Aristóteles, Freud e todos os elementaristas acompanhados também por dualistas como Descartes e Kant entre outros) que pensavam que consciência, inconsciente, alma, psiquê eram responsáveis pelo conhecimento.

Perceber é conhecer. Eis a grande solução, eis o grande problema colocado para as abordagens epistemológicas e psicológicas.

Os psicólogos gestaltistas descobriram, em experimentos, que toda percepção ocorre graças à existência de relações de Figura-Fundo. Diziam que o percebido é a Figura; o Fundo nunca é percebido. Quando se percebe o Fundo é por ele ser Figura, é a reversibilidade perceptiva.

No desenho 4 e 6, abaixo, quando percebemos o colar (Figura) percebemos uma jovem; quando o pregnante da percepção é o nariz, percebemos uma velha.

Também exemplificando a reversibilidade perceptiva, no desenho 2, abaixo, quando o pregnante é o desenho em preto, percebemos uma taça, quando o pregnante é o desenho em branco, percebemos dois rostos.

A vivência desta reversibilidade, desta passagem, da mudança entre Figura e Fundo, é o mesmo processo que possibilita apreender as dinâmicas do processo relacional do ser no mundo. Durante o processo de crescimento e desenvolvimento, o sistema de referência perceptiva mais pregnante para a criança é o decorrente do que está diante dela: o espaço, o outro (mãe, pai, babá por exemplo) e o seu próprio corpo. O que é quantificável, comparável, organiza: mais forte, mais fraco, mais rico, mais pobre etc. O denso, assim organizado, decide e regula. O conhecimento começa a ser hierarquizado, se conclui por exemplo que é mais confiável o que se vê do que o que se ouve e que pegar e provar (gustar) são muito comprobatórios.

Sutil, frequentemente, é o que escapa ao tato, ou à visão, ou à audição, olfato e gustação. Acontece que o sutil, o relacional é o que configura e permite a globalização da totalidade, de tudo o que se percebe. Não percebendo a totalidade, segmentando-a, criou-se a separação entre denso e sutil, surgindo assim inúmeras explicações filosóficas, psicológicas e religiosas. Ato e potência (Aristóteles), res extensa e res cogitans (Descartes), consciente e inconsciente (Freud), espírito e corpo, por exemplo.

Para nós, perceber o sutil é tão instantâneo quanto perceber o denso, basta estar voltado para o que se dá1 ou viver o "ser das coisas" como dizia Clarice Lispector, ou ainda, o que percebe a mãe quando olha para seu filho e o vê feliz ou triste.

Na teoria do conhecimento, no desenvolvimento do conhecimento psicológico, o dualismo é responsável por distorções e incoerências conceituais. Por exemplo, dizer que a imitação, a repetição são fatores responsáveis pela aprendizagem gerou muitos enganos: ao privilegiar o denso, o quantitativo, quebrou-se a unidade, a totalidade.

Não se aprende por imitação nem por observação, muito menos por esforço ou por ensaio e erro. Koehler fez uma experiência com chimpanzés para demonstrar isso. Como gestaltista ele estava muito preocupado em mostrar que o todo não é a soma das partes, e ainda que isso se aplicava a toda e qualquer vivência humana inclusive ao processo de aprendizagem. À época, o dominante na explicação dos processos de aprendizagem era a teoria behaviorista.

Atualmente, psicólogos cognitivistas estão presos a esse esquema conceitual, e mesmo quando tentam melhorá-lo com a ideia de percepção (que entendem como processamento de informações captadas pelos sentidos) permanecem elementaristas e reducionistas.

Koehler fez seu experimento na ilha de Tenerife (Canárias). Ele queria mostrar que não se aprende por imitação mas sim por insight, apreensão súbita de relações. Construiu uma grande gaiola onde colocou vários caixotes no solo; pendurou um cacho de bananas no teto. Colocou um chimpanzé dentro da gaiola e deixou outro chimpanzé observando a experiência, observando o que acontecia. O chimpanzé que estava dentro da gaiola passeava, olhava e quando avistou a banana pulou, gesticulou para tentar pegá-la. Não conseguiu. Depois de andar, olhar o ambiente (conduta exploratória) ver os caixotes, arrastou-os e os colocou uns sobre os outros embaixo do cacho de bananas, conseguindo pegá-las para comer. Os caixotes são, então, desarrumados, o macaco é retirado da gaiola e o outro chimpanzé, que a tudo assistia, é colocado na mesma gaiola para ver se imitava o que tinha assistido, para ver se ele tinha aprendido. Logo que entra, em disparada, ele corre para os caixotes e os empilha, só que não consegue pegar as bananas, pois apesar de colocar os caixotes uns sobre os outros, não os colocou embaixo das bananas. Imitou o que viu - caixote em cima de caixote. Mas a relação caixote em cima de caixote embaixo de banana não pôde ser imitada, era a sutileza relacional, configuradora da globalização, do insight.

Quando copiamos, quando imitamos, apenas utilizamos, não temos insight, não apreendemos a relação configuradora dos fenômenos, não transformamos; seguimos mantendo as adaptações. Nos massificamos no processo de conseguir, de parecer e assim tudo passa a significar enquanto resultado, vitória ou fracasso. A necessidade de adaptação e utilização estabelece blocos, padrões que subtraem o sutil (o dado relacional).

Nota

1 É o colocar entre parênteses husserliano. Noesis é o ato pelo qual se pensa. Noema é o que é pensado. Husserl tinha o pensamento orientado para o problema da correlação do sujeito e do objeto no ato do conhecimento, passando assim do realismo eidético para o idealismo transcendental. Mais radical que a dúvida cartesiana, a redução fenomenológica consiste em colocar entre parênteses a atitude natural, ingênua, da consciência, afirmando espontaneamente a existência do mundo, e em isolar o dado natural, contingente (o mundo exterior e o eu empírico) do eu puro, do sujeito ou ego transcendental. Modelo de toda evidência original e necessária, a consciência pura se descobre como "intencionalidade", fonte de toda significação, pois que constituinte do objeto. Sua análise eidética permite precisar modalidades de consciência: consciência perceptiva, consciência imaginativa etc. Insistindo sobre a experiência fundamental e original que o sujeito tem do outro e fazendo da intersubjetividade o próprio fundamento da objetividade do mundo, Husserl evitou o solipsismo para onde arriscava conduzir o idealismo transcendental.