Para Foucault, a compreensão do indivíduo, de seus processos sociais e psicológicos podem ser resumidos nas relações de poder com a sociedade. A prática do vigiar e punir1 é exercida nas instituições, nas regras e nas leis. Desde as barcas de loucos lançadas ao mar para garantir a respeitabilidade e tranquilidade dos cidadãos considerados não loucos, até a criação de instituições prisionais e de áreas condominiais fechadas, esse poder é mantido.

O pater familias, os cárceres, as coerções sociais, leis e instituições de regularização ressoam este instrumento: o poder das instituições sociais que regulam e decidem.

Inevitável lembrar Kafka que descreve no conto Diante da Lei o homem simples esmagado pelo poder da burocratização anônima, da disciplina e da vigilância, levado a esperar por toda vida um acesso à Justiça, que nunca é alcançado:

Diante da lei está um porteiro. Um homem do campo chega a esse porteiro e pede para entrar na lei. Mas o porteiro diz que agora não pode permitir-lhe a entrada. O homem do campo reflete e depois pergunta se então não pode entrar mais tarde. – É possível – diz o porteiro. – Mas agora não. Uma vez que a porta da lei continua como sempre aberta e o porteiro se põe de lado, o homem se inclina para olhar o interior através da porta. Quando nota isso o porteiro ri e diz: – Se o atrai tanto tente entrar apesar da minha proibição. Mas veja bem: eu sou poderoso. E sou apenas o último dos porteiros. De sala para sala porém existem porteiros cada um mais poderoso que o outro. Nem mesmo eu posso suportar a simples visão do terceiro…

… O que é que você ainda quer saber? – pergunta o porteiro. – Você é insaciável. – Todos aspiram à lei – diz o homem. – Como se explica que em tantos anos ninguém além de mim pediu para entrar? O porteiro percebe que o homem já está no fim e para ainda alcançar sua audição em declínio ele berra: – Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a.

(Franz Kafka, tradução de Modesto Carone)

Reduzido às motivações e demandas, o horizonte humano se pontualiza nos redutores desejo e poder. Esse reducionismo cria categorias, constrói padrões, estimula contingências e estabelece o Ter como dimensionante do Ser, do estar- no-mundo-com-o-outro.

Para Freud, o desejo, que com suas vestes atualiza demandas antigas e inconscientes, é a chave que permite compreender toda ação e movimentação do humano. Matar mulheres, por exemplo, não ser capaz de conviver com elas pode ser uma manifestação de querer destruir a mãe terrível que o rejeitava e o problematizava. Quebrar barreiras, atacar poderosos pode significar a busca da realização de frustrações, de desejos destruidores.

Fixados no poder, dinamizados pelo desejo, pouco resta aos seres humanos. Espoliar e realizar desejos são seus parâmetros. A busca constante de felicidade e apoio frustram, embora dinamizem. Permitem um vencedor, mas joga a maioria no porão dos não assistidos. É a nova barca de loucos lançada ao mar? É o Édipo furando os próprios olhos quando defrontado com o avassalador desejo que o exclui? Atualmente não há Édipo que fure os próprios olhos. Hoje em dia gritam, reclamam e justificam todos os seus erros atribuindo- os à má fixação das engrenagens.

Acontece que somos seres em relação. Tudo que existe está em relação entre si. É a grande rede, a configuração que tudo açambarca. Somos seres resultantes de interseções. Somos constituídos pelo tempo, pelo espaço e pelo outro. Recortes dessa constituição geram pontos ou destaques artificiais que começam a funcionar como peças de quebra-cabeças, possibilitando surgimento de explicações extras para uni-los: poder, sociedade, cultura, desejo, economia.

Sem objetivo utilitarista, sem modus operandi, sem funções predeterminadas, o ser humano deve ser percebido, configurado enquanto possibilidade de relacionamento submetido a condições necessárias e possíveis. É exatamente nesse exercício de necessidade e possibilidade que será configurada liberdade, alienação ou participação. Ser no mundo é, por definição, exercer liberdade por meio de vínculos e contextos possibilitados por seus estruturantes relacionais. É necessária essa configuração para não cair nos determinismos das pontualizações: poder, desejo, sistemas biológicos, géneticos, sociais, econômicos, cármicos, históricos etc. como visões explicativas do humano.

Nota

1 Em Vigiar e Punir Michel Foucault trata desta temática.