Ao exercer comparações surgem congruências tanto quanto divergências frequentemente discrepantes. Nas vivências psicológicas essas constatações resultam das adequações dos desejos à realidade. Verificar congruências e adaptações traz realizações, aplaca e satisfaz desejos, assim como o não conseguir realizá-los, a verificação da total impossibilidade de efetivação dos mesmos, ou seja, a constatação das discrepâncias gera vazios, defasagens muitas vezes preenchidas por raiva, medo, inveja, ciúme e revolta.

Não realizar os próprios desejos geralmente é frustrante. Quando, além da frustração, se estabelece questionamentos surgem esclarecimentos, antíteses que demonstram a impossibilidade de concretizar os desejos, propósitos ou metas. É esclarecedor quando se aceita a impossibilidade demonstrada. Verificar o não ter condição, o não caber na realidade, a não existência de possibilidades e condições para atingir o almejado, o desejado, é educativo. Apreende-se limites, descobre-se diferenças em supostos possíveis ou até em imaginados impossíveis, e assim se adquire meios, condições de perceber a própria realidade, os próprios impasses.

Perceber o que é considerado discrepante sem questionar as estruturas que o geram - desejo e realidade, solução e problema - é um contínuo chorar sobre o leite derramado, ou ainda, imaginar que se houvesse leite ele seria derramado, ou que é preciso aparar, conter o leite. Essas metáforas remetem a um pensamento simbólico de Nietzsche: "O deserto avança de todos os lados, ai daqueles cujo deserto está dentro de si". Nietzsche, apesar da clássica e arbitrária divisão entre externo e interno, elucida bem a quebra da continuidade do estar-no-mundo-com-o-outro, tanto quanto mostra a impossibilidade disso acontecer se a pessoa não se aceita.

Não se aceitar é se esvaziar como individualidade, como possibilidade de relacionamento, consequentemente como ser - que é a possibilidade de relacionamento. Percebendo-se como ilha, ou mesmo oásis no deserto, ponto de concentração ou ponto de difusão, o indivíduo se esvazia. Essa espera do outro, essa espera das circunstâncias é fatal, desde que esvaziadora das possibilidades relacionais e cristalizadora das necessidades de sobrevivência. Na metáfora de Nietzsche - deserto - o outro é transformado em água, produto vital para ser tragado, engolido e metabolizado. É o desespero de conseguir, suprir, atingir, ter o outro, ter a família, ter a tranquilidade, ter o padrão do bem estar. É a desumanização, o virar robô executante de tudo que lhe é exigido. Esse virar deserto mitigado é a demolição do estar, do morar no mundo, de ser com o outro. Virar deserto é a coisificação, a desumanização criada pelo atendimento constante das propostas e exigências situacionais: seja feliz, organize sua família, aproveite seu tempo, não abra mão de suas conquistas, insista em seus sonhos. Colocar propósitos diante do ser humano é uma maneira de direcioná-lo, o que automaticamente implica em negar suas possibilidades de descobertas, sua curiosidade de buscar, sua certeza de encontrar.

Vazio, despersonalização, descrença, frustração são bem resumidos nessa metáfora do deserto, tanto quanto lembram e fazem pensar no mito do Eterno Retorno, outra grande passagem de Nietzsche acerca da vivência humana, de sua memória e desejos:

... E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem - e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente - e você com ela, partícula de poeira!”. – Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!”. Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?”, pesaria sobre os seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, e não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela?

(Friedrich Nietzsche, “A Ciência Gaia”, edição Companhia Das Letras, 2001, p.230.)